11 abril 2012

3. COMPANHEIROS DE CELA

Passar uns tempos internado no Hospital Universitário de Genebra, o HUG, penso eu, não seria tão ruim se eu pudesse ficar em um apto individual, sozinho com meus pensamentos. Daria para aproveitar o retiro involuntário e escrever um pouco, ler e descansar, atendido por enfermeiras jovens e bonitas.

A realidade, porém, gosta de nos colocar em maus lençóis, mesmo que esterilizados. Eu passei uma noite apenas em uma enfermria com mais umas cinco ou seis pessoas e jamais vou esquecer o concerto de flatulências que durou a noite toda, acompanhado de gases altamente venenosos vindos de todas as direções e se concentrando em volta da minha cama feito uma nauseabunda neblina.

Nem vou conseguir esquecer dos sons: havia o de apito quebrado, bem fininho, vindo do velhinho da cama ao lado, que provavelmente pensava que ninguém ouvia; o de tuba entupida, que um grandalhão deitado no canto mais remoto do quarto emitia sem cessar, na maior desfaçatez; o de britadeira, do meu vizinho da frente – e o pior de todos, o de panela de pressão vazando, produzido por um paciente que devia já estar morto a dias, a julgar pelo cheiro que emanava.

Meio grogue pela falta de sono e de ar puro, fui transferido para um quarto privado, ou melhor, semi-privado, para dois pacientes, como todos os quartos “privados” do hospital. Ficar com só mais uma pessoa é um luxo para poucos; eu sabia disso e estava agradecido, mas mesmo assim eu tinha certeza de que iria me incomodar. Quem seria o outro habitante daquela cela? Teria eu a sorte de ser uma pessoa em coma ou anestesiada por quatro dias? Ou o azar de ter um vizinho simpático, daqueles que puxam papo e têm sempre uma palavra de incentivo e apoio para nos dar (sem pedirmos)? Arriscava até pegar um convertido que resolvesse me salvar do diabo com leituras de trechos de um livro só. Que medo!

Bem, o fato é que eu tive, nas três vezes em que estive internado no HUG, seis ou sete room mates, um mais estranho do que o outro. Não sei o nome de nenhum, mas me recordo de todos pelos apelidos que neles coloquei para poder lembrar deles depois. O primeiro foi o Malamorte, um senhor de uns 140 anos que não parava de reclamar da enfermagem, ora em inglês ora em francês:
- Fucking nurses! Stupid bitches! Je veux aller au toilette! Venez me chercher, NOW!

Ele falou, reclamou, xingou e tossiu tanto que eu peguei o meu iPad e fui ver uns filmes na sala de espera. Não achei que tinha problema, mas uma enfermeira discordou:
- O senhor não devia estar aqui às quatro horas da madrugada... E o seu fone de ouvido deve ter se soltado, porque dá para ouvir tiros e explosões lá do posto de plantão!

Eu dei uma de joão-sem-braço e fui ficando por lá até o dia clarear. Aí mudaram o velho de quarto e eu fiquei um dia inteiro sozinho - maravilha! - até receber um novo colega de habitação, o Aquaman.

Dei a ele esse codinome porque o jovem estava permanentemente ligado a diversos aparelhos que incluíam uns tubos de vidro cheios de líquido borbulhando o tempo todo. O barulho até que não era dos mais desagradáveis: parecia que eu estava flutuando dentro de um grande aquário. O problema é que penetrava tanto na minha cabeça que eu sonhei que era um lambari, me debatendo, fisgado por um anzol preso na barbatana , até acordar com a enfermeira me dizendo que eu devia estar tendo um pesadelo, pois tinha arrancado o tubo de soro do meu braço e estava pulando na cama!

Depois dele vieram vários outros companheiros de cela, que nem tenho espaço aqui para descrever. Alguns vieram andando, outros empurrados em cadeiras de rodas, outros deitados em suas camas, semi anestesiados. Eu, que torcia para ficar sozinho, tinha vontade de passar uma boa rasteira nos que viam andando, empurrar os de cadeira de rodas para fora da varanda e colocar os meio inconscientes no elevador de serviço, sem sua plaquinha de identificação.

O Mad Max foi meu último companheiro, ainda na semana passada: um moço forte, todo tatuado, careca, com jeito de skin head cansado e nervoso (má combinação....). Foi logo tirando toda a roupa, que atirou com raiva na sua metade do armário, arrotou bem alto e prolongadamente, se sentou só de cueca na beira da cama e abriu seu notebook preto, todo cheio de adesivos de caveiras, cobras, raios e runas e desandou a falar em altos brados pelo skype com várias pessoas da gang, digo, família. Ao olhar aquela figura estranha que seria minha bela companhia para a noite, já fiquei pensando:
- Será que perdeu o cabelo de tanto balançar a cabeça cantando Fear of the Dark? Será que é um friorento fotofóbico e vai resolver invocar comigo só porque eu não nunca apago a luz nem fecho a janela?

Por via das dúvidas fiquei bem quietinho na minha metade do quarto, separado do MadMax apenas por uma frágil cortina, até ele sair para fazer uns exames. Aí empacotei as minhas coisas e piquei a mula do hospital, numa aventura que vou contar em outro post.

Por ora deixo aqui registrado que sou culpado das acusações de ser elitista, egoísta, intolerante, rabugento e mimado, pois nem o cabelo – quando eu tinha – eu gostava de repartir, quanto mais um quarto de hospital... Da próxima vez vou fingir que estou passando muito mal, com uma doença desconhecida mas super contagiosa apanhada em uma floresta tropical, para ver se me colocam no isolamento!

 * leia abaixo as crônicas anteriores ou no Arquivo

6 comentários:

  1. Antonio e a Viola foi tb nessa incursao alpina?
    kkk o texto esta muito engraçado!
    []s
    Bruno

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  2. Oi Simão!
    Já disse e repito: sou sua fã!!
    Estou adorando seus posts e dando boas risadas!

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  3. chorei de rir!! vc esta se superando meu irmão!!! cada dia melhor! mto bom mesmo!! hahahahah...

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  4. Parada sinistra essa ai Macaco Alpino. 1o mundo é assim mesmo é a tal socialização da medicina. Deposita os cara ai e eles que se entendam. Peidos,arrotos e escarradas faz parte da terapia.
    Abs Mano

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  5. Oi Antonio, dei boas gargalhadas! Bem legal!

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  6. Muito legal, Antonio! Está uma delícia ler seus escritos. Fiquei com vontade de saber mais sobre a vida destes pacientes! Estou torcendo por um livro! Abços
    Rita Mattar

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