18 janeiro 2013

23. A ESCALADA.

Há dois anos tive meu primeiro e divertido contato com uma festa genebrina. Ia eu chegando para a minha sessão diária de fisioterapia, pronto para enfrentar os exercícios mais entediantes do mundo, feitos na companhia de umas duas dúzias de bem dispostas pessoas (enfartados, acidentados, recém operados, idosos e outros atletas) quando vi, colado em destaque na porta do hospital, um grande cartaz com os dizeres: “Tous à l’Escalade!”

Traduzi literalmente e deu “todos à escalada!” - o que não fazia nenhum sentido ali naquele lugar cheio de alquebradas figuras. Só mais tarde, ainda rindo da ironia, descobri que a Escalade é uma festa exclusiva de Genebra, que comemora um remoto dia do ano de 1602, quando a cidade repeliu um ataque noturno do exército do Duque de Savóia. Até aí nada de mais, nesse canto do planeta que viu um sem fim de guerras e combates. A forma pela qual a cidade se livrou de ser tomada de surpresa é que é única.

Conta a lenda que uma senhora chamada Catherine Cheynel tinha quatorrze filhos, o que não era incomum naquela época (para espanto e horror dos casais de hoje em dia). Não devia ser fácil alimentar toda aquela tropa, mas ela fazia o seu melhor, cozinhando uma bela sopa de legumes em um grande caldeirão de ferro para sua molecada. Que legumes eram, eu não sei dizer, nem se havia algum ingrediente animal no sopão, mas ela aparentemente tinha de deixar a gororoba cozinhando de um dia para o outro (para amolecer as coisas que iam lá dentro ou para dar algum sabor à mistura, sei lá). Sabe-se disso porque foi graças a essa dedicada matrona e à sua sopa preparada de véspera que a cidade de Genebra escapou de ser tomada pelos soldados do Duque.

A D. Catherine, ao ir dar uma olhadinha no apetitoso sopão lá pelas duas horas da madruga, ouviu uns barulhos estranhos vindos de um setor da muralha da cidade e, curiosa como só ela, resolveu se debruçar e dar uma espiadinha muro abaixo. “Se for um gato, vai já para a sopa”, deve ter pensado. Mas em vez de um bichano ela viu um soldado savoyard escalando a muralha, mais traiçoeiro do que o gato que ela pensava achar - e mais peludo.

Não posso dizer se ela gritou primeiro ou se antes de berrar despejou a sopa fervendo sobre o pobre soldado (que já devia ser alguém bem azarado para ter sido escolhido para fazer aquela escalada no meio da noite). O fato é que o berro que o gato deu acordou os demais sentinelas, o alarme foi dado e toda a guarnição da cidadela pode acorrer aos muros e assim evitar a capitulação da cidade.

Desde então, no dia 11 do mês de dezembro ou sábado mais próximo dessa data, comemora-se aqui a festa da Escalade - que a bem dos fatos deveria se chamar da não-escalada, ou da quase-escalada, já que a escalada em si foi imterrompida por um despejar de abobrinhas, vagens, cenouras e batatas quentes sobre a cabeça do infeliz soldado, que depois dessa noite nunca mais aceitou convites para sair tomar uma sopinha para se esquentar.

Dizem as más línguas (leia-se: eu) que os mais felizes com a manobra foram os filhos da matrona cozinheira, que se salvaram tanto do exército inimigo quanto do jantar do dia seguinte!

Para compensar, nos dias atuais serve-se a famosa sopa de legumes da D. Chirstine em diversas barracas, fumegante e quase cheirosa. Não sei do que é constituída e é melhor não saber, porque na fria noite de novembro cai muito bem e nem é tão ruim como seria de imaginar, sendo suíça.

Fico pensando em como seria um episódio assim nos tempos do Brasil Colônia. Será que se arremessaria um panelão de feijoada? Uma barrica de bacalhau? Um quindim pelando? Boa como é, a comida luso-brasileira nem precisaria ser atirada muro abaixo sobre a cabeça de soldados inimigos: bastaria servir o rango e a paz estaria selada, consolidada após a sobremesa, é claro.

A Escalade é uma festa bem popular e dura mais de uma semana, com diversos preliminares. Nos supermercados e chocolaterias vendem-se pequenos caldeirões de chocolate com legumes de marzipan dentro. Muito bonitinhos e com certeza bem mais gostosos do que a sopa salvadora.

No sábado anterior há uma meia maratona, da qual muita gente participa fantasiada, ou melhor, “vestida à caráter”, com roupas da época. A corrida é legal mas o peso das armaduras, os fardões largos, as calças justas e as lanças e mosquetes carregados nas mãos, não contribuem exatamente para a quebra de recordes olímpicos nessa competição. Na realidade, é um milagre que alguém consiga terminar a prova, pois além do vestuário tem o trajeto de sobe-e-desce pelas ruelas de paralelepípedos molhados da vieille ville, calçando botas de salto alto.

No dia da festa propriamente dita as ruas estreitas oferecem uma paisagem meio mágica, com fogueiras, tropas de pseudo soldados passando a cavalo, patrulhas a pé com suas alabardas, bandeiras coloridas por toda parte, crianças imitando os figurantes e quase sendo atropeladas pelos cavalos, e barraquinhas de comes e bebes (mais de bebes do que de comes).

A trilha sonora é bem diversificada, com os sinos das igrejas tocando, fogos espocando, tiros de canhão, repiques e pífaros das tropas, choro de crianças e risada de borrachos. O rufar dos tambores faz a gente querer sair marchando atrás das patrulhas, Eu até ensaiei uns passos, mas a família é meio encabulada e sumiu das minhas vistas assim que comecei a cantar bem alto “marcha soldado, cabeça de papel”…

Se a gente fizer uma forcinha para entrar no espírito da comemoração, imaginando que os turistas são moradores da velha vila, dá para se imaginar na Genebra de quatro séculos atrás. O cheiro de mofo das roupas guardadas há um ano ajuda muito. Os bêbados também contribuem para essa ilusão, pois desde aquela época devem estar por ali, enchendo a cara de vinho quente e o bucho de salsichão com mostarda.

A Escalade é a festa mais divertida da cidade, na minha opinião. Existe uma versão sem graça que afirma ser essa história uma invenção (qual não é?) e que quem deu o alarme foi um guarda municipal atento. Eu e toda a cidade preferimos a versão da madame Cheynel, muito mais interessante.

Mas nem tudo é tradição e efeméride histórica em Genebra. Na ponta oposta da Escalade está a Lake Parade, um horrível carnaval tecno modernoso patrocinado por empresas de refrigerantes, telefonia e informática. Em vez de carros alegóricos, propaganda em neon com as marcas pulsantes dos patrocinadores; em vez de samba enredo, jingles mesclados com o pior techno pop; no lugar de adereços elaborados, gente fantasiada (será?) de piranhas, michês e cafetões… É um indescritível espetáculo de mau gosto, com seus horripilantes ‘lovemobiles’ apinhados de pessoas dançando de cintura dura em suas feíssimas fantasias nas cores do patrocinador. É tenebrosa, a Lake Parade.

Além da parada em si, que interrompe a ponte Mont Blanc e o sossego da cidade desde as quatro da tarde, no ano passado houve um concurso de pessoas fantasiadas de robôs e uma tentativa de quebrar um ridículo recorde: o do maior número de pessoas de mãos dadas dentro de um lago. Os malucos entraram na água gelada e “abraçaram” o lago - que como tem partes fundas perto da margem andou pregando algumas peças nos participantes, para deleite dos espectadores.

É de longe a festa mais deprimente que eu já vi, em qualquer parte do globo. Sim, mais do que o Carnaval em Curitiba! Ainda bem que, suiçamente, a festança tem hora exata para acabar. Deu 10 horas e a ponte reabre, os caminhões se recolhem, a sonzeira termina e a paz volta a reinar, até o ano seguinte.

Tanta paz que num dia desses vi um cartaz que muito apropriadamente mostrava uma cidade deserta e dizia:
“De acordo com as profecias, toda a vida desaparecerá e isso será chamado de Apocalipse... Em Genebra chamamos de Final de Semana”.

16 dezembro 2012

22. Trens novos... e velhos.

“Nossa, que cheiro estranho”, pensei eu, “do que será?”

Depois de uma ou duas fungadas eu tive certeza: era cheiro de velho!

O trem havia parado em um pequena cidade perto de Biel, no trem de Genebra para Basel, para onde eu estava indo ver uma feira de tecnologias educacionais. Até então, uma viagem bem tranqüila, sem nada fora do normal, vagão praticamente vazio.Como eu não gosto de viajar encostando joelhos ou ralando coxa com nenhum estranho, estava bem feliz por poder viajar sozinho em um espaço para quatro pessoas. A felicidade, no entanto, tende a durar tanto quanto um sorvete no verão.

Quando o trem deu mais uma paradinha em alguma vila com nome impronunciável, eu nem imaginava que o vagão seria invadido por uma turma barulhenta de mais de vinte professoras e professores aposentados indo ver a feira. Mas não fui tomado de surpresa, porque o cheiro que veio lá de fora quando as portas se abriram já tinha me alertado: vem aí um grupo respeitável de gente ‘de idade’!

Eu estava meio dormindo, mas o ar peado com cheiros conflitantes que precedeu a entrada do pessoal me acordou e me sacudiu como se fosse um tsunami vaporoso, antes mesmo que eles se abancassem em todos os assentos disponíveis, com um alarido pouco suíço.

Foi um abre-alas olfativo, uma vanguarda que preparou o caminho para a chegada dos demais odores, que iam do perfume fóssil ao de baú de roupas do tempo em que a Suíça tinha mar.

Antes que digam que sou preconceituoso, esclareço que não disse que “velho cheira mal”. Disse apenas que cheiro de velho, mais ainda por estas bandas, é inconfundível e tem longo alcance.

Não se trata de um único cheiro mas de uma combinação caótica de diversos odores, uns desagradáveis, outros menos, outros até respiráveis em situações controladas. Isoladamente, alguns destes aromas poderiam ser toleráveis (dois séculos atrás) mas, combinados, ameaçam as narinas mais sensíveis com um tufão de estímulos olfativos poderoso.

Sei que o conceito de “agradável” é muito relativo. Para as velhinhas que passam talco de alfazema pode ser que este pó tenha um ‘perfume’ que as agrada, mas para mim é meio como aspirar rapé vencido. Nunca tive esse desprazer, mas me lembro de passagens nos livros de Monteiro Lobato e fico torcendo para que o talco vire pó de pirlimpimpim e eu seja transportado mágica e rapidamente para um lugar fresco e aberto, como o topo do Monte Branco

Por falar em alfazema, estive na Provença no verão e tive a oportunidade de ver os lindos campos azuis de lavanda, tão famosos. Não quero desestimular o turismo na região, mas o aroma que emanava daquelas arbustos secos parecia o de banheiro de rodoviária recém-lavado. Ou o de sabonetes chiques comprados por R$1,99 a dúzia. Para minha consternação a maioria das professoras usava algum derivado dessa florzinha pretenciosa, mesclado com o cheiro de naftalina e madeira que sempre permanece suspenso no ar em torno de casacões e xales tirados de guarda-roupas antigos, daqueles que há décadas vêm pedindo para serem queimados para gerar calor.

Só não entendo por que os velhos suíços cheiram à roupa guardada e mofada: eles nunca tiram os casacões e sobretudos de lã, faça frio ou calor. Acho que estes senhores se penduram no armário para dormir, sem tirar os agasalhos! Devem usar suas roupas como isolantes térmicos, mantendo uma temperatura constante durante todo o ano, como os tuaregues.

Outra possível explicação é que o mofo faz parte do vestuário e já vem de fábrica, ofertado em várias cores e texturas, do branco giz ao verde limão embolorado. O que julgamos ser um casaco mofado na realidade é um Armani suíço.

O trem era bem novo e bem mantido, o que só piorava a situação. Em função do ar condicionado as portas são hermeticamente fechadas. Não entra o frio externo, não sai o calor interno – e nem os aromas que o vagão acumula. Terrível efeito colateral da tecnologia. Melhor é andar em trens mais velhos, daqueles que dá para abrir as janelas, mesmo congelando os demais passageiros.

Agora chego a um assunto delicado e possivelmente politicamente incorreto: o do uso (ou melhor, do não uso) de maravilhas modernas como o desodorante . Não vou generalizar dizendo que as axilas suíças não são borrifadas todos os dias, mas que o desodorante não está entre os eletrodomésticos mais usados por aqui, disso eu tenho grande desconfiança. São Tomé não precisaria ver para crer: bastaria respirar um pouquinho a uns dois metros dos braços abertos de certos passageiros de um ônibus ou tram para virar São Tomé nocauteado!

Para não ser injusto demais, devo dizer que em geral as mulheres suíças que compraram seus perfumes nas últimas décadas andam bem cheirosas e até deixam rastros no ar por onde passam. Com estes dois extremos, não é preciso ter faro de sabujo para seguir alguém por aqui...

Penando nesse tipo de bobagem, lá fui eu entre lavandas pré-históricas e sobretudos fungados enfrentar mais uma hora e meia de viagem até meu destino final. Além das incômodas flagrâncias, tive de aturar uma algazarra e tanto durante o trajeto, uma vez que os ex-docentes não paravam de falar ao mesmo tempo e dar sonoras risadas, como os escolares que um dia foram (a nostalgia e a surdez são dois fatores que ajudam a aumentar o burburinho em aulas para adultos e em excursões da ‘melhor idade’). Perto das essências e olores emanados, porém, o barulho foi um incômodo fácil de tolerar.

A volta de Basel foi mais tranqüila, trem vazio e mais velho, janela aberta, ar frio entrando pelas narinas sofridas. Chegando em Genebra, fui a uma exposição inusitada: “Perfumes da Bíblia”, no Museu da Reforma. Já tinha sentido cheiro de velho, não haveria mal em ir sentir velhos cheiros, pensei. E valeu a pena: em painéis com belos desenhos, trechos e citações, aprendi sobre diversos aromas e sua função religiosa, mas o mais interessante foi poder aspirar e sentir o cheiro de mirra, láudano, âmbar, incensos, bálsamos e outros perfumes citados na Bíblia.

Juro que me senti transportado a tempos e lugares distantes e misteriosos, levado pelos estímulos olfativos que incrivelmente despertam outras sensações, visuais, sonoras e até gustativas. Bem, isso eu já sabia, pois cada vez que sinto um cheiro esquisito, de flores arcaicas, perfumes ancestrais, tecidos jurássicos e peles não arejadas, me vejo de novo naquele trem com os vinte e tanto professores, ouço sua algazarra infanto-senil e sinto gosto de cabo de guarda-chuva na boca. Bem-vindos à era da multimídia!

Sempre achei que o design do corpo humano tem umas sérias deficiências, dentre as quais a falta de uma forma eficaz de tapar os ouvidos e as narinas, assim como podemos fechar os olhos e a boca. Seria muito bom se desse para acionar pestanas nas orelhas ou apertar lábios nasais, isolando barulhos e cheiros que nos desagradassem.

Mas poderia ser bem pior, se tivéssemos sido castigados com o faro de um cachorro. Talvez seja por isso que cães só pagam meia tarifa para andar de trem: é para compensar o dobro do sofrimento!

27 outubro 2012

21. Um Parque de Cães e Cantores

Aqui perto de casa existe um parque especial para cães. Melhor seria dizer que é um parque para donos de cães. Acho que os canis canis, se tivessem escolha, prefeririam um parque onde os humanos ficassem cercados e os cães pudessem correr soltos pela cidade, mas como quem manda somos nós, eles relaxam e aproveitam.

Muitos moram em apartamentos; outros, mesmo morando em casas, não têm muita oportunidade de fazer contato direto com outros cães. Dessa forma, o parque para cães é uma grande ideia - e bem executada. Trata-se de uma parte de um parque maior, que foi bem cercada com tela alta, onde os donos podem deixar seus cachorros soltos sem medo de que vão para a rua e tentem atravessar fora da faixa de pedestres.

Nessa área protegida, a cachorrada corre à vontade, brinca, pula, cava, faz xixi sobre xixi, rola na grama e faz todas as outras coisas que cachorros fazem quando libertos de suas guias, em companhia de outros seres da mesma espécie. Os donos, enquanto seus amigos caninos se divertem, podem se sentar nas cadeiras de plástico espalhadas por toda a área, que podem ser colocadas ao sol ou à sombra, conforme o gosto do freguês e o humor de São Pedro. Existem algumas mesas também, para quem quiser usar para um piquenique ou para pentear seus pupilos ou as duas coisas juntas.

É interessante observar que cada pessoa que vai chegando solta seu cachorro e vai pegar uma cadeira, que geralmente posiciona de forma equidistante de duas outras cadeiras já ocupadas. É geométrico: quem chega traça uma bissetriz e é nessa reta que coloca seu assento. Nas horas de maior movimento o parque fica todo pontilhado, formam uma estampa bem simétrica. Sinal de que não sou só eu que gosta de isolamento! A regra só é quebrada pelos mais gregários, que preferem formar grupos de cachorreiros, provavelmente para contar as peripécias de seus adotados, como pais em festas de jardins de infância.

Além das cadeiras e mesas, o parque tem diversos outros equipamentos para facilitar a vida de seres humanos e caninos, como bicas com água fresca, recipientes com sacos plásticos “pega-bosta” à disposição para embalar cocô (de cachorro) e cestos de lixo para depositar o resultado.

Tudo muito limpo. Como na cidade, é muito mais difícil sujar um lugar bem limpo do que um sujo: sujeira atrai sujeira (“já tá sujo mesmo, o que é que tem eu jogar um papelzinho também?”) e lugares limpos tendem a se manter limpos; ninguém quer parecer o porcalhão e se arriscar a levar uma bronca de um cidadão zeloso (já vi isso em Curitiba). A limpeza do lugar só é quebrada por uma eventual cagada que ficou sem ser recolhida, sabe-se lá por que razão. Pode ser que o cão tenha conseguido fazer sem que ninguém tenha notado, o que é bem possível dado o tamanho do parque e a quantidade de árvores ali plantadas. Só sei que, se o dono nota, vai na hora recolher a massa - alguns sem se alterar, como se estivessem catando cogumelos, outros com cara de nojo, reclamando de seus pupilos. Em todo caso, vale a pena ficar atento às minas escondidas ou elas vão explodir em seus sapatos.

O parque é super seguro. Não existem guardas ou polícia por perto, mas pode-se ir lá a qualquer hora, sem qualquer problema. Eu levei a Luna lá à noite algumas vezes. Na primeira vez fiquei com aquela apreensão típica de quem traz na bagagem a experiência brasileira: tudo escuro, ninguém por perto, sombras estranhas… No Brasil eu jamais ficaria ali por mais de meio segundo. Aqui, logo me tranquilizei ao ver chegar uma senhora sozinha e se sentar calmamente para observar o seu beagle correr feliz junto com a Luna. Ouvi crianças brincado no parquinho e aí me livrei definitivamente do meu medo habitual de ser assaltado, morto e esquartejado.

O parque é muito bonito, uma ilha verde no meio de um bairro residencial com muitos prédios. Lugar bom para descansar e relaxar. Isto é, se não fossem algumas brigas esporádicas que pipocam aqui e ali. Os cachorros de pequeno porte são os mais encrenqueiros. Nunca vi os de grande porte brigarem por lá. Claro, se alguém tiver um São Bernardo agressivo não vai levar o bicho correr no parque! Ele iria comer um pincher por minuto e cuspir só as coleirinhas. As brigas de verdade são bem raras e curtas; o pior é quando se alastram e envolvem os donos. Aí sim a coisa pode complicar, como quando na escola os pais se envolvem nas brigas da piazada.

Um dos frequentadores me contou que num dia desses até a polícia teve de ser chamada para apartar uma briga entre duas distintas proprietárias de cãezinhos fãs de vale-tudo. Que pena, perdi essa! Fico com vontade de incentivar um pouco a discórdia, para quebrar a monotonia daquela paisagem tão pacífica.
- Olha, madame, não quero me intrometer onde não sou chamado, mas acho que seu meigo cachorrinho foi mordido por aquele outro ali, que é mal educado e agressivo e a dona não disse nada! Me parece que já é a terceira vez e ela simplesmente faz que não vê….que absurdo!

O parque é frequentado por uma fauna variada - canina e humana. Nota-s por muitos traços distintivos que se trata tanto de genebrinos quanto de estrangeiros, como por exemplo pelas diversas línguas faladas pelos donos e pelos cães. Pets de estrangeiros, principalmente latinos, tendem a ser mais barulhentos, não sei por que… E pelos nomes também: Cherry, Loup, Ma Belle e Loulou são com certeza cães de estrangeiros tentando parecer genebrinos, pois ninguém daqui daria nomes tão ridículos como esses.

Raças, já vi muitas, conhecidas e desconecidas, indentificáveis ou OVNIs caninos. Tirando as quinze raças banidas, as demais se esforçam para ter seus representantes desfilando no parque, seguindo a vocação diplomática internacional da cidade. Esta variedade engloba também os donos.

O parque abriga figuras estranhas: uma das mais conhecidas é a do cantor de ópera, proprietário de um dálmata calmo (e surdo!). Este senhor costuma subir em um banco e cantar, por horas a fio, sua música chatíssima com uma bela e potente voz. Eu fugiria correndo se estivesse em um teatro mas no parque até fica legal ouvir a cacofonia composta pelo canto e pelos uivos dos cachorros que ficam em volta do cantor, atraídos pelos sons inumanos que dele emanam.

Faz parte do treinamento obrigatório dos cães na Suíça a “socialização” com os outros espécimens e por isso o parque tem uma função claramente educativa. Se o seu cão consegue brincar solto com os outros sem morder ou ser mordido está razoavelmente socializado. Não sei o que me faz lembrar de uma creche… Todos os cães habitantes do cantão devem se comportar de forma civilizada, isto é, aceitando a proximidade de estranhos impassivelmente, sem demonstrar possíveis descontentamentos com a vizinhança.

A Luna, por esse critério, é uma dama: é interessada pelo sexo oposto mas evita trepadas no primeiro encontro. Na primeira ida ao parque, ela ficou aterrorizada com um pastor grandalhão e afoito, que insistia em se apresentar com fungadas nas suas partes privadas. Se ela se assustou com uma simples cheiradinha, não quero ver o que vai fazer quando a linguiça quiser ir para o forno. Em suma, ela é casta, tímida e arisca com os machos, como muitos pais gostariam que suas filhas adolescentes fossem…

Não sei se é porque ela é branca e brilha no lusco-fusco do parque, ou se é simplesmente por ser fêmea, o fato é que ela atrai a cachorrada como luzes atraem mariposas. Os machos, por seu lado, se comportam sem o mínimo senso de auto-crítica. Um bulldoguinho francês, daqueles de orelhas de morcego e formato de barrica de pinga, vive tentado montar na Luna apesar de faltarem uns 50 cm para ele chegar perto de onde mira. Num dia desses o peste resolveu dar vazão à sua frustração amorosa e deu vazão a seus líquidos fétidos sobre o caderno de notas que eu sempre levo para me distrair no parque. Lavei diversas vezes sob água corrente mas o cheiro não saiu e como as notas acabaram ficando, digamos, um tanto confusas de ler, acabei tendo de jogar o bloco fora.

Pena que em Curitiba não temos um parque como esse. Sei que no Museu do Olho (nome oficial dado ao local apelidado de Museu Oscar Niemeier) existe um jardim onde algumas pessoas soltam seus pets. Nunca levei os meus lá, então estou falando só de ouvir dizer e o que eu ouço dizer (pelas más línguas, as únicas que vale a pena ouvir) é que se trata mais de uma passarela de egos dos donos do que de lugar para recreação canina. Mesmo não sendo cercado é de qualquer forma um embrão e pode ser desenvolvido pela próixma administração municipal. Áreas verdes temos, cães não faltam.

Alguns cuidados, no entanto, serão necessários para adaptar esse projeto ao contexto cultural curitibano. Em primeiro lugar, dado o nível de educação da população canina local (e de alguns donos), uma ambulância ou UTI móvel para cães deverá estar semrpe disponível no local. Da mesma forma, pode ser construído um quiosque para advogados de porta de cadeia ofertarem seus serviços aos proprietários que quiserem resolver disputas territoriais herdadas de seus cachorros. Pensando bem, uma UPPC - unidade pacificadora de proprietários de cães - seria uma boa ideia também.

Em torno do parque poderia ser montado um shopping center completo (em plena sintonia com o modo curitibano de se distrair), contanto com uma grande variedade de hiper necessários produtos e serviços para cães e proprietários, tais como: aluguel de cachorros bonitos ou de raças exóticas para quem quiser levar o cão que não tem para passear; serviço de lava-rápido canino, com opções de lavagem pré e pós passeio; dog fast food com oferta de ossos diet e cupcakes de fígado - e até mesmo uma cooperativa de flanelinhas cinófilos, para cuidar dos cães enquanto os donos se sentam no café para fofocar à vontade.

Bem planejado, tal parque poderia render bons dividendos - mais ainda se o voto vier a ser estendido aos cães, como seria coerente. Afinal, seres irracionais continuam elegendo certos políticos, não é mesmo?

20 setembro 2012

20. MAGOO NO TRÂNSITO.

Se o velho Mr. Magoo tivesse se aposentado em Genebra, teria sua vida (e a dos que o cercavam) muito facilitada.

Uso o passado porque na minha infância Mr. Magoo já era velho e assim já deve ter batido as botas, para usar uma expressão da época. Personagens também morrem, não por causa da idade, mas por nosso esquecimento - como mostrou Neil Gaiman em Deuses Americanos.

Da mesma forma, penso eu, podem ressuscitar pela lembrança. Foi o que eu fiz com o Mr. Magoo, depois que passei a enxergar muito mal em função da minha retinopatia. Fui me lembrando dele aos pouquinhos e quando percebi já saía para passear com ele, estava pegando ônibus a seu lado e fazendo compras na sua companhia. Consequentemente, ia me identificando com ele cada vez mais à medida em que tentava aprender a conviver com a minha deficiência (sem eufemismos, por favor – é deficiência mesmo) visual.

Acho que comecei a ver a cidade com os olhos do Mr Magoo (quase literalmente, porque ainda não estou tão ruim como ele) pela mágica da empatia, me colocando nos seus sapatos. Por isso posso dizer que, se ele vivesse aqui, seu sobrinho não teria tanto trabalho, pois o velhinho provavelmente seria capaz de sair sozinho sem causar muita confusão. A cidade está preparada para os magoos como ele e eu.

Explico: o conjunto de recursos que Genebra oferece para pessoas com deficiências visuais é muito grande. A começar pelas faixas de pedestres, que estão em toda parte, a cada quadra praticamente, amarrando o trânsito mas facilitando a vida de quem precisa cruzar as ruas para o outro lado de lá (que é onde sempre estão os lugares para onde queremos ir).

Todos - com exceção dos ciclistas - param para que os pedestres possam passar: basta chegar perto da faixa, não é preciso nem colocar o pé na rua. É uma boa sensação sentir o poder de parar todo o tráfego sozinho, nos dois sentidos, sem fazer mais do que ameaçar querer atravessar a rua!

Os motoristas que vêm de países onde imperam os carros não se adaptam muito bem a esse esquema. Aprender a parar, é claro, mas vão se irritando no trajeto, inexplicavelmente. Não vejo motivo para nervosismo só porque às vezes tem duas faixas na mesma quadra, com um sinaleiro na esquina seguinte...

A lei de Murphy é implacável: todo sinal estará verde até o pedestre acabar de atravessar a faixa; assim que o motorista arrancar o sinal fechará. Logo que abrir, o carro poderá avançar uns 100 metros e mas já terá de parar de novo, na próxima faixa, pois lá vem um velhinho de bengala batucando na rua como se estivesse caçando uma barata. Dá até para enxergar a linha pontilhada que ele vai traçando no chão, rumo à receptiva faixa.

Alguns procuram acelerar para chegar na faixa antes do velhinho e por isso os cem metros antes das faixas são locais perigosos para quem não vê bem e erra o local da travessia. Os motoristas podem roer as unhas, mas como é bom ser pedestre nessa hora e poder sair para fazer as comprinhas diárias, sabendo que vai poder atravessar a rua onde precisar, sem correr o risco de virar parte do asfaltamento!

Nos poucos dias que fui ao Brasil quase fui atropelado - porque me distraí (duas vezes) ou porque, não havendo faixa nem sinal até onde a curta visão alcançava, tive de arriscar uma bisonha corrida por entre os carros para cruzar a rua. Sei que corria meio de lado, me preparando para virar de bunda para o veículo que tocasse em cima de mim, ingenuamente imaginando que assim iria me machucar menos.

Ainda bem que meu problema é só a visão e ouço muito bem. Se fosse meio surdo também seria um risco enorme, pois não teria escutado nem as buzinas nem os berros de “sai da frente, moleza” ou de “acelera, lesma!” que me alertaram para a perigosa e crescente proximidade de carros e motos. De certa forma, gritos e buzinas funcionavam como o disparo de um revólver no atletismo e eu saía na disparada para os meus dez metros rasos com barreiras.

Quem tem uma boa visão periférica são os motoristas de ônibus, que, como os nossos, são exemplos de educação e gentileza para com os passageiros. Se o motorista percebe que uma pessoa vai perder o ônibus se ele arrancar, ele espera. Isso às vezes é irritante para quem está no ônibus e tem pressa (suíços não têm essa palavra no seu dicionário) mas todos aceitam sem chiar.

Já vi um motorista esperar uma senhora que estava do outro lado da rua apertar o botão para fechar o sinal, aguardar o sinal fechar, atravessar calmamente, ir até a máquina de bilhetes, abrir a bolsa, procurar as moedas, comprar o bilhete e finalmente subir no ônibus. Tudo isso em menos de vinte minutos! E todo mundo aguardando em paz.

Igualzinho ao comportamento que vi nos nossos ônibus comuns e intermunicipais - com a pequena diferença de que os motoristas brasileiros parecem esperar de propósito que a pessoa coloque um pé no ônibus para então arrancar (o ônibus e a perna que ainda estava na calçada). Dessa forma prestam um serviço social, pois contribuem para o alongamento diário e o aumento da elasticidade dos passageiros, principalmente de quem anda meio travado.

Para ajudar mais ainda, eles procuram parar bem longe da calçada para que o passageiro tenha de esticar bem a perna para alcançar a escada – e só arrancam quando os músculos estiverem no seu máximo, para causar o maior benefício possível. Devem ter sido muito bem treinados, por isso exige uma boa coordenação e reflexos rápidos. Em Genebra, os motoristas não são tão considerados e deixam que as pessoas cuidem de sua preparação física em outros locais e horários.

 Nos ônibus e trams quem não enxerga bem é auxiliado pela voz que anuncia a próxima parada. surdinhos podem olhar os monitores que, em vez de comerciais, passam a rota e mostram os pontos seguintes. Se nada disso der certo, o passageiro pode perguntar ao motorista! Não vi, mas não me surpreenderia se visse uma plaquinha dizendo: “Fale com o motorista sempre que precisar: ele terá prazer em auxiliar você”.

Outros recursos ajudam a tornar uma saída de casa mais um passeio do que uma aventura na selva, para quem tem alguma dificuldade física. Nas esquinas com sinal de trânsito, por exemplo, cegos podem tocar no poste com sua bengala e o sinal vai fechar para que ele passe, soando um bip até abrir novamente. E tem um tempo real entre o piscar do sinal do pedestre e a abertura do sinal para os carros. Sim, sei que no Brasil também tem – mas é algo em torno de um décimo de segundo e sempre vai abrir quando gente estiver bem no meio da rua; não dá para chegar ao outro lado intacto sem colocar velocidade olímpica nas passadas.

Um urbanista me disse certa vez que Curitiba não adotou as faixas de parada obrigatória de veículos para “não atrapalhar mais ainda o trânsito”. Trânsito de quem? O meu trânsito está sempre atrapalhado quando saio a pé na minha querida cidade natal. Aqui me sinto muito mais seguro, com tantas regras e normas que protegem o pedestre e não os carros.

Essas regras todas, no entanto, não se aplicam aos ciclistas. Ou melhor, muitos deles não se aplicam às regras. Ciclistas são um estranho híbrido de pedestre e motorista: não sendo motorizados, se consideram pedestres quando houver vantagem nisso; mas como andam sobre rodas, se consideram motoristas quando acham conveniente. Querem o melhor dos dois mundos e ignoram as regras de ambos. Estes ciclistas constituem o maior risco à integridade física dos magoos que, como eu, depositam cega (ops!) confiança na proteção das faixas.

Patinetes também são um perigo. Ubíquotos por essas bandas, utilizados por crianças pequenas, jovens e até adultos (na idade, pelo menos), esses veículos impulsionados por patadas trafegam em ruas e calçadas indiscriminadamente.

Uma das minhas visitas olhou espantada quando um menino passou por nós montado em seu patinete: "Olha, um skate de duas rodinhas só!" me disse ela. Quase respondi que não era skate, não, era uma bicicleta bem baixinha, com tablado!

Patinetes têm uma tropia positiva pelas canelas dos incautos e ceguetas que não vêm a tempo o bólido se aproximando. Dado o fato de que patineteiros freiam virando o patinete de lado, o que pega na sua perna é a justamente tábua, geralmente dando uma pancada quebra-tíbia muito dolorida. O jeito é saltar, o que evita a tabuada mas provoca o encontro choco de duas cabeças no ar.

Tirando ciclistas e patineteiros, é uma tranqüilidade sair a pé pela cidade. Há um aplicativo (que se pode acessar no celular, tablet ou computador), que avisa certinho quanto tempo vai demorar até o próximo ônibus chegar no ponto. Como já se usa GPS para controlar a frota, não precisa muito mais para disponibilizar essa informação para os passageiros. Isso é muito bom, mas o melhor é que o app também informa a melhor rota para você chegar de um ponto a outro, estima a duração da viagem e informa quanto tempo um trajeto a pé levaria entre os dois pontos desejados. Você faz as contas e muitas vezes vê que vale a pena ir a pé. Mesmo que seja um pouco mais demorado, você pode constatar que indo a pé você ainda vai chegar no horário, ganhando em saúde e poupando algumas moedinhas.

Isso sim incentiva as caminhadas! Com tantas faixas e sinais, boas calçadas, respeito dos motoristas e muita segurança pública, ser pedestre por aqui é muito fácil. Não que eu tivesse muita escolha, pois já não dirijo faz tempo. Bem, eu poderia dirigir se quisesse, mas magoo como ando os outros motoristas reclamariam um pouco, eu acho. Talvez os velhinhos nas faixas de pedestres até gostassem de alguma excitação e da oportunidade de fazer algum exercício!

Quando eu voltar para o Brasil não sei como vou me readaptar. Já estou procurando um veículo anfíbio de pequeno porte, megablindado e com piloto automático, que me permita transitar por aí sem grandes riscos. Algum sobrevivente tem um para vender?

12 setembro 2012

19. MOFANDO NA FILA.

A educação suíça é fantástica, mas pode ser extremamente irritante, como no caso das faixas de pedestres (quando se é motorista) ou das ciclovias (quando se é pedestre), já comentadas em blogs anteriores. Já comentei também a falta de pressa que é padrão por aqui, onde só corre quem está fazendo jogging ou tentando pegar um ônibus que está quase saindo.

Existem lugares onde as duas coisas – educação e lerdeza - se juntam de uma forma exasperante, como nos supermercados. A começar pelos dias e horários de abertura. Supermercados não abrem aos domingos. Ponto final. Só o do aeroporto abre por algumas horas e alguns (poucos) mercadinhos de turcos e indianos espalhados pela cidade. Supermercados também não abrem nos feriados e tampouco à noite: fecham às 18 ou 19 horas todos os dias, menos às quintas, quando fazem um esforço sobrehumano para atender até as 21 horas.

Resumindo: você só pode fazer compras em horário de trabalho ou aos sábados, disputando espaço com todas as demais pessoas que não puderam dar uma escapadinha durante a semana para fazer suas compras essenciais.

O pior é que nem dá para sair dando cotoveladas, empurrões, rasteiras e outras técnicas usuais nos supermercados brasileiros; aqui a educação prevalece, mesmo às custas da sanidade.

Quer um teste infalível do grau de seu controle emocional? É só entrar em uma fila em qualquer dos caixas em um supermercado e você vai saber rapidinho se já está integrado ao modo suíço de viver ou se, pelo contrário, o seu acelerador interior continua ligado.

Tenho oportunidades quase diárias de fazer esse teste e ainda não consegui passar. Veja um exemplo, tirado de um dia típico de enfileiramento em um dos supermercados perto de casa.

A fila em que eu estava tinha quatro pessoas à minha frente. Somente quatro pessoas: uma moça, uma velhinha, um menino de uns dez anos e um senhor. A primeira já estava terminando de passar as suas compras quando escolhi aquela fila. "Vai ser rapidinho", pensei eu. Não poderia estar mais enganado...

Vi que a moça esperou até a caixa apresentar o ticket para só então abrir a bolsa, procurar nas profundezas alguma coisa por uns dez minutos e tirar de um compartimento lateral uma carteira pesada, da qual abriu diversos zippers até encontrar uma carteirinha com seus cartões de crédito (uns vinte). Tudo bem devagar, como se estivesse imersa em gel. Sem alterar o seu ritmo, foi navegando pela pilha de cartões, olhando cada um como se fosse uma fotografia de uma pessoa querida, até achar o que queria usar - e aí finalmente efetuar o pagamento. Arre!

Essa rotina não tem nada de incomum: acho que faz parte de algum treinamento de clientes femininas, pois quase todas se comportam dessa mesma forma. Isso quando não resolvem pagar com vales, cupons e outros papéis que a caixa terá de conferir, um por um, ver a data de validade e anotar seus números de série num caderninho ensebado e manchado que todas guardam em baixo do computador (esse é um mistério que ainda não solucionei: se elas têm um computador, por que é que precisam daquele caderninho?).

Enquanto isso, na fila, todos esperam, sem piar nem chiar. Nada dos educados comentários que ouviríamos no Brasil, como “vai cozinhar aí mesmo?”, “alguém morreu aí na frente?” e “vamos fazer uma vaquinha e pagar pra ela, aí ela libera a fila!”. Nada disso. Todo mundo quietinho face à adversidade.

Para testar um pouquinho mais a paciência e o treinamento de todos, a caixa espera até que um cliente guarde todas as suas compras, para começar a atender o próximo. Claro que não existem empacotadoras e na maioria dos mercados nem sacolas plásticas são fornecidas; as de papel são cobradas à parte. As pessoas levam as suas próprias sacolas, carrinhos, mochilas e outras traquitanas – as quais, por uma nova lei de Murphy, sempre serão menores do que o volume das compras realizadas.

Esperadamente, no caso da moça que empatava a fila, essa lei foi aplicada integralmente. A sacola que ela havia levado caprichadamente dobrada não comportou as compras e ela decidiu pegar uma sacola de papel. Depois de gastar uns decaminutos escolhendo a estampa mais bonita, descobriu que não tinha dinheiro vivo para pagar pela sacola, desencadeando novamente toda aquela rotina de abrir bolsa, bolsos e carteirinhas para pegar o cartão.

A fila, já coberta de teias de aranha, esperava impassível. Alguns já se sentaram sobre as cestinhas e abriram seus jornais; outros puxaram seus ipads e começaram a jogar (obviamente) paciência; a maioria desandou a fazer ligações e a conversar no celular com deus e todo mundo. Desconfio que as telecoms dão uns prêmios para as caixas mais enroladas, pois quanto mais demoradas as filas, mais tempo as pessoas falarão nos seus telefones. É uma teoria da conspiração bem realista...

Ainda tem mais! As maiores cadeias de supermercados têm muitas unidades de vizinhança, como as que eu vou na nossa commune. Em dias de semana a idade média dos clientes nesses mercados menores deve estar lá pelos oitenta anos. Eu me sinto jovenzinho naquela clientela!

A velhinha que estava aguardando pacientemente a moça pagar, resolveu se mover para passar a sua compra. Vi que tinha na sua cestinha somente uma baguette, um queijinho azul e uma latinha de ração para gatos. Notei, feliz, que ela já trazia na mão uma nota de dez francos. "Essa vai passar rapidinho", pensei eu. Ledo engano! Ao pegar a comida de gato, a caixa pergunta para a velhinha, tratando-a com familiaridade:

- É para o Boubou? Faz tempo que não vejo aquela lindeza!
- É sim. Ele anda muito enjoado ultimamente, não come qualquer comida e vem emagrecendo. Vou tentar essa daqui, com atum, para ver se ele come.
- Não me diga! Sabe, eu tive um gato que não comia nada, mas passei a preparar eu mesma a comidinha dele e ele ganhou peso depressa.
- Ah, é? O que você dava para ele?

E a interessantíssima conversa segue nesse pique por várias dezenas de voltas do relógio (que eu contei uma a uma) para meu desespero. “Troca esse gato por um cachorro e pronto – libera a fila!”, tive vontade de gritar, mas me contive ao me lembrar da quantidade de felinófilos que existe por aqui. "Paciência, paciência", falei com meus botões; "a velhinha está se despedindo e já está chegando a minha vez".

A senhora entregou a nota de dez francos amarrotada para a caixa, que pediu 17 ou 20 centavos para facilitar o troco. "Acho que tenho", disse a senhora, abrindo a bolsa em busca da moedeira, que encontrou depois de apenas uns vinte minutos de lenta procura. Aberta a moedeira, foi tirando dali moeda após moeda, que ia passando para a caixa ver o valor, guardar as que serviam e devolver as que eram de valores maiores ou eram euros, não francos. E a fila, tranqüila e comportada, olhava com simpatia (ou apatia) a velhinha fazer a sua comprinha diária. Eu, contrastando, já estava querendo fazer as duas comerem as moedas no chá das cinco.

Aí chega a vez do menino, que só tinha um refri para passar. "Agora anda", pensei, animado. Triste ilusão, quebrada quando o moleque tirou da mochila uma pilha de contas para pagar. Me senti voltando no tempo e no espaço, teletransportado para uma fila em um banco brasileiro, com o menino suíço se transformando em um offfice-boy, daqueles que materializam do nada duplicatas e carnês a pagar. A caixa foi dando entrada conta por conta – e cobrando uma por uma, pois os sistemas não são interligados. E a fila, quietinha; nem ao menos olhadas ostensivas para o relógio acompanhadas de fungadas e suspiros.

Depois de uma rápida eternidade o moleque pagou o seu refri e liberou a posição para o senhor que estava à minha frente. "Só mais um!", festejei. Nesse momento, a caixa coloca um aviso dizendo que tinha ido buscar troco no setor central (aqui não tem, como no Brasil, aquela moça que faz isso para as caixas) mas já voltava. Saindo bem devagar, foi troando palavras gentis com as outras caixas e com os clientes que reconhecia no caminho. Idem na volta. E eu ali na fila, criando raízes e musgo.

Finalmente ela voltou, reabrindo o posto – não sem antes guardar todas as moedas em seus respectivos compartimentos, cuidadosamente - e o senhor começou a passar as suas coisas. Ele era bem eficiente e num instante passou uma quase uma cestinha cheia. Quase.

A coisa fica feia quando o leitor de código de barras não lê uma etiqueta ou quando o cliente esqueceu de pesar algum produto e colar a etiqueta ou ainda quando o cliente desistiu de levar alguma coisa. Em todos esses casos, quem vai até as gôndolas trocar, pesar ou devolver o produto, é o cliente, pois não existem aquela mocinhas que ficam por perto dos caixas prontas para essas e outras emergências. Às vezes, no caso de clientes de mais idade, as caixas, em mais uma demonstração da educação helvética, deixam seus postos e vão elas mesmas trocar ou pesar o produto em questão, para que poupar o esforço ao idoso.

Evidentemente, isso aconteceu com a última peça da compra do senhor, que havia esquecido de pesar e etiquetar suas nectarinas. E lá se foi a caixa, solícita, resolver o problema pessoalmente. Na fila, eu já estava soltando fogo pelas ventas, como uma mula-sem-cabeça.

Chegou a minha vez, inacreditavelmente. Para acelerar um pouco, eu ia batendo escanteio e saindo para cabecear: passava parte das compras, ia empacotando o que dava tempo enquanto a moça registrava e voltava para passar mais alguns produtos. A coisa estava indo bem, até que aconteceu uma travada no bom fluxo. Vi a caixa examinando atentamente um dos limões que eu havia escolhido.

- Este aqui está começando a mofar. É melhor o senhor ir pegar outro – me disse ela. -
- Não! respndi, exasperado. Pode deixar, eu levo assim mesmo!
- De jeito nenhum, nós não vendemos produtos de segunda qualidade. O senhor tenha um pouco de paciência que eu vou trocar!

E lá se foi a moça, naquele passo de lesma anestesiada, até o setor de alimentos frescos, substituir gentilmente o meu limão quase mofado. É tanta gentileza que dói!

Quando finalmente consegui pagar a compra e colocar tudo na mochila, me toquei que tinha esquecido de comprar justamente o produto que me fez ir ao mercado em primeiro lugar... Até considerei voltar para pegar, pois o mercado já tem caixas de auto-serviço, nos quais se pode passar as compras sozinho, pagando com um cartão e ir embora, sem ninguém para conferir se tudo foi mesmo pago.

Eu me recuso a usar esse tipo de serviço; por princípio sou contra a automatização que corta empregos assalariados e usa o meu trabalho de graça. Além disso (pode não parecer) gosto do contato humano nas filas de caixas pilotados por moças tão educadas, com clientes tão simpáticos e sossegados. É uma verdadeira terapia para os estressados: ou você aprende a ter calma e relaxar, ou morre de nervosismo de uma vez, acabando com seu estresse para sempre!

Além disso, onde mais eu aprenderia o que se dá para um gato anoréxico?

03 setembro 2012

18. O PORTUGUÊS HELVÉTICO.

O título completo desse post deveria ser "O português helvético: como ser literal na terra da precisão", mas faltou espaço.

Brasileiros se divertem contando piadas de português, nas quais os nossos irmãos lusitanos são caricaturas vivas de uma típica.... simplicidade, digamos. Eu gosto mais de contar alguns casos presenciados pessoalmente, ou ouvidos de fontes seguras, que revelam uma característica marcante do povo português: a sua tendência a interpretações literais. Veja só do que eu estou falando.

Um amigo com quem convivemos muito tempo no Brasil estava vindo para Genebra em um vôo Brasília-Lisboa, com conexão para cá. Na altura da “refeição”, a aeromoça pergunta para o nosso amigo:

- O senhor aceita o jantar?
- Aceito, obrigado. Qual são as opções? pergunta ele.
E a portuguesa responde:
- Sim – ou não...

Esse tomar das palavras pelo seu valor nominal causa embaraços mil para os brasileiros que tentam se comunicar com os lusitanos genebrinos. Entrei em uma mercearia portuguesa há umas semanas atrás, procurando alguns produtos brasileiros que eles sempre têm por lá e reproduzo o dialogo com a dona da loja. Quase ipsis literis...

- Bom dia. A senhora tem azeite de dendê?
- Tenho sim. E ficou parada, me olhando com um semi sorriso.
- A senhora poderia ver para mim?
- Ora veja o senhor mesmo: está ali bem em cima, disse, apontando para a prateleira atrás dela.
- Sim, estou vendo, falei meio irritdo, mas a senhora poderia apanhar para mim?
- Poderia, sim, se o senhor acaso mo pedisse.
- Estou pedindo! Por favor, eu quero comprar aquela garrafinha ali!!!
- Pois não. Agora o senhor está sendo claro... São três francos e vinte centimes.
- Está bem, aqui estão... quatro francos.
- Eu não tenho troco, então serão quatro francos.
- Mas a senhora não pode cobrar a mais só porque a senhora não tem troco!
- Posso sim, o que não posso é vender com prejuízo. Isto é um magazin de importados, não uma casa de caridade!
- Não, assim não dá, onde já se viu! Eu pago três francos e depois trago os vinte centavos.
- O senhor está pensando que somos um banco, para dar-lhe crédito?
- Então não levo, pronto! disse eu, indignado. Ao sair da loja, ouvi a literal senhora dizer para alguém que devia estar atrás daquela inevitável cortina que dá sabe-se lá para onde:
- Estes brasileiros são assim mesmo. Fazem a gente perder tempo e saem sem levar nada. Pensam que estamos para brincar aos merceeiros...

Quem vier do Brasil para a Suíça tem de tomar muito cuidado com o que comenta com outro brasileiro em público, porque as chances de que alguém que estiver por perto entenda português é muito grande. A população portuguesa é a terceira maior dentre as de origem estrangeira na Suíça, quase igual às italiana e alemã (1ª e 2ª). Se somada ao crescente número de brasileiros e lusófonos africanos, dá para arriscar que aproximadamente uma a cada dez pessoas daqui entende português o suficiente para te dar uma resposta atravessada - ou um plantar um tapa na tua orelha – se você fizer algum comentário desairoso. Segure a língua!

Uma brasileira me contou que sua mãe venho visitá-la e quando estavam ambas no tram, entra um senhor e dá um forte esbarrão na senhora, sem se desculpar. Ela reclama para a filha, bem alto:
- Nossa, que grosso!
Ao que o homem replica, em bom português:
- Ora pois, a senhora sentiu?

Nossos irmãos de além-mar (aqui o certo seria dizer “aquém-mar”) não são muito conhecidos por sua gentileza, o que destoa do contexto suíço. Posso estar generalizando injustamente, mas vivi uma situação dessas e posso atestar.

Estava eu em um prédio comercial, procurando um escritório em um longo corredor. Como aqui eles não usam números, mas sim nomes, eu tive de ir de porta em porta tentando ler as plaquinhas no escuro do corredor. De uma delas saiu uma mulher, deu de cara comigo, se assustou um pouco mas disse, a la suisse:
- Pardon, monsieur! Desolée...
Mais adiante, um jovem, ao sair de outro escritório, me deu uma leve esbarrada mas logo me falou, britanicamente:
- I’m so sorry!
Aí sai do elevador um senhor apressado, me dá um encontrão daqueles de deslocar a clavícula, me arremessando até a parede oposta e ainda me diz, em português bem português:
- Ó pá, não vês por onde andas?

Mudando um pouco o foco, vejam o que me contou um amigo na semana passada. Tendo se mudado para Genebra há seis meses, ele já estava morando no ap que tinha alugado mas ainda aguardava a chegada da mudança - e nada de notícias. Cansado de tanto esperar suas coisas e de ligar para a companhia brasileira de despacho, finalmente ele consegue localizar a mudança, que estava parada há meses no depósito de uma empresa portuguesa em Lisboa, com o inspirado nome de... Transportadora Senhora da Agonia!

Só faltou ser na rua Senhor dos Aflitos. Essa transportadora disputa o troféu de nome mais “português” com a Funerária da Boa Hora e Ajuda, também em Lisboa e o Hotel Residencial O Cortiço, em Beira. A campeã brasileira é a empresa de instalações elétricas Armagedon, de Curitiba! Bem, estou desviando do assunto...

Eu ia dizer que os negócios portugueses em Genebra têm nomes como Retardo Magazin de Vins (quem, o dono ou o freguês?) e Demolidora e Construtora Silveira (se fosse o contrário seria um problema!). Os nomes de restaurantes portugueses, por exemplo, variam do óbvio (Le Portugais) ao inescrutável (Les Schtroumpfettes!).

Esse jeito português de dar nomes literais aos bois chega até às profissões. Li, no placar médico externo de uma clínica aqui em Genebra: Dra. Cláudia Barriga - Medicina Interna. E notei mais adiante: Dr. Plauto Machado – Ortopedia. Procurei, e não achei, o nome do proctologista - mas fiquei imaginando!

Enfim, as histórias são muitas e os causos abundantes. Com casos assim, quem precisa de piadas prontas?

25 agosto 2012

17. VERÃO, ÁGUAS E BRASIBRINOS.

Os brasileiros genebrinos – brasibrinos, para encurtar – formam uma fauna variada de expatriados, todos meio doidos por terem vindo morar aqui. Como um grupo, somos meio estranhos, pois nos alternamos nos estados de euforia e depressão. Deprimidos ficamos quando batem as saudades de casa, dos amigos, da família, da praia, da comida... e eufóricos quando vemos de perto coisas que não temos por lá, como uma nevasca ou um bom salário.

O verão para mim é uma tortura, pois a estação traz todo tipo de praga: moscas, pernilongos, suor, preguiça, turistas e vizinhos barulhentos. Mas para a turma saudosa de suas praias, um calor de 35º é uma fonte de alegria. Em muitas situações, uma fonte real, não metafórica. A relação com a água é um fator distintivo dos brasibrinos - e nem falo nos banhos em casa, pois não sei se o não-hábito do banho diário cruzou as fronteiras com a vizinha França, mas sim da forma como nós tratamos as diversas formações aquáticas em Genebra.

A atração dos brasileiros por água fica evidente quando se observa as pessoas em torno de uma fonte. O genebrino é o que puxa um copinho dobrável, que cuidadosamente enche com a água da bica e bebe em pequenos goles ritmados. O estrangeiro toma ‘no bico”, jorrando água pelos cantos da boca e espalhando respingos nos outros com as mãos. O brasileiro é o que mergulha a cabeça na bacia da fonte, berra brrrrr e sai sacudindo a cabeleira feito um cachorro depois de sair do banho. Rindo, diz: ai que delícia! – e sai enxugando as mãos nos fundilhos do bermudão.

Brasibrinos são loucos que não percebem que moram no sopé dos Alpes e que o lago é composto por água derretida de geleiras, com temperatura quase igual, alimentado por rios que vêm diretamente das montanhas, brancos, espumando e rosnando como cachorros bravos. Pensando equivocadamente que o lago pode ser tomado como o mar do nordeste, azul e claro, caem na água congelante para se refrescar. E conseguem! Ficam refrescados para o ano todo, sempre espirrando e com narizes cor de rabanete escorrendo feito clara de ovo quebrado.

Outros (poucos) são mais atirados e vão nadar nos próprios rios de gelo recém-derretido, como o Arve, que passa aqui bem atrás de casa. É um rio de correnteza forte, acelerada, como se tivesse pressa de chegar no Rhône, onde deságua em plano centro da cidade. O Arve, que carrega material sedimentar e portanto de águas mais escuras, encontra o limpíssimo Rhône acabado de sair do lago Leman, formando a Junction, espécie de encontro das águas do Negro e do Solimões em bem menor escala. Talvez por isso atraia tantos brasileiros nos dias quentes e mesmo em finais de semana mais frios. O pessoal leva cães, gatos, crianças e sogras para nadar no rio, pescar na confluência e farofar nas margens.

Perto aqui de casa, o Arve é barrado por uma pequena usina hidrelérica. É proibido andar nas suas margens nas cercanias da usina e em locais onde as encostas são muito abruptas – na prática isso significa quase toda a extensão do rio na região. Um pouco acima da barragem formou-se uma pequena praia, com leito de pedras escorregadias. Acima e abaixo dessa prainha, só margens bem acentuadas e com mais placas avisando que é perigoso nadar ali do que árvores na mata ciliar.

Perfeito para a brasileirada! Bonito, “típico”, despoluído, meio deserto – e proibido! Tá prá nós!

Os brazuquinhas machos logo querem cair na água, e caem. Sendo mais claro: muitos caem das margens na água, meio sem querer, escorregando barranco abaixo, por conta própria, descuido ou empurrão. Outros caem por terem ido molhar a ponta dos pés, escorregado nas pedras lisas e ido parar na correnteza com um splash bonito de se ouvir. Claro que depois de meio segundo de contato com a água fria já querem voltar para onde vieram, fazendo brrrrrr como uma britadeira desregulada e com a pele feito frango depenado..

É um espetáculo e tanto, que sempre que posso vou assistir de camarote, sentado à sombra de uma bela árvore de onde tenho uma boa vista do campo de batalha. Ainda não cheguei a ver alguém sendo arrastado pela correnteza e cair da cachoeira (que deve ter uns dois metros) antes da represa da usina, mas ainda vou ver, se o calor continuar e o lugar ficar mais popular entre os meus afoitos compatriotas.

Um aspecto do ser feminino que eu ainda não consegui explicar, mas posso afirmar pela observação, é que as mulheres sentem mais frio do que os homens. Não precisa nem olhar, basta comparar os gritos de ‘brrrrr’, ‘que gelo!’, ‘tô congelando!’ emitidos logo depois da entrada na água por homens e por mulheres. Estas vencem em volume, altura e duração, sem fazer esforço. Sempre. Isto é, tem exceções - bem agudas, por sinal - mas isso só confirma a regra.

Quem for aos Bains de Paquis ou à Genève-Plage nessa época vai ver que mesmo meio azuis de frio, ficam no lago alguns jovens fazendo algazarra, transmutados em crianças arteiras, jogando água uns nos outros, pulando em um pé só e fazendo “cavalinho-de-guerra”, enquanto as namoradas tocam "ai se eu te pego" em um boombox.

Um show de alegria no verão suíço, que rezo para que passe logo e assim eu possa de novo me sentar tranquilo na beira do lago num dia cinzento, fresco - e silencioso.

09 agosto 2012

16. Hoje é terça, deve ser a Bélgica!

Muitos turistas brasileiros não se tocam que estão em outras terras, com outra cultura e outros costumes. Não são todos, é claro, mas muitos vêm para a Europa sem qualquer noção de onde estão ou do que esperar dos países que visitam, às vezes no ritmo de um por dia: “Hoje é terça, deve ser a Bélgica” é o titulo de um velho filme que me veio agora à cabeça.

A maioria quer tirar fotografias, posando em frente a monumentos e edificações famosas, produzindo e colecionando provas documentais de que realmente passaram por lá, para depois poder mostrar para os amigos – de preferência para os que ainda não puderam fazer a mesma viagem.

- Olha eu aqui, bem naquele castelo... como era mesmo o nome, amor? Foi na Alemanha ou em Berlim?
- Onde era eu não me lembro, querida...  mas lembro que era um castelão de pedra, meio medieval e tudo!

Por isso eu não consigo enxergar a relação (que muitos dizem que existe) entre turismo e cultura. Viajar pode ser só sair de seu pais e voltar carregado de bugigangas, sem ter mudado nada. Visitar uma biblioteca não desperta, por si, a vontade de ler.


Estava eu tranquilamente tomando um refri na beira do lago quando minha paz foi interrompida pela chegada de uma excursão – ó vida – de brasileiros. Ouvi uma senhora responder para alguém que tinha perguntado o que ela gostaria de beber:
- Eu tomo qualquer coisa, não quero incomodar, não... um suco, pode ser, de goiaba ou maracujá mesmo...

E uma outra dizendo para as companheiras:
- Vamos ver se naquela banca lá adiante tem coxinha ou um pastelzinho?

Pensam que é brincadeira? Não é, não. Juro e perjuro que é verdade.

Vi um senhor comprando para levar para o filho uma camiseta branca com a frase “Eu estive em Genebra” estampada no peito, sobre um desenho do jet d’eau em vermelho. O homem me pegou olhando e gentilmente ofereceu:

- Leve uma dessas para o seu filho também, ele vai gostar! Estão duas por 10 francos... a gente pode rachar. Por que não aproveita?
- Acho que não, obrigado - eu disse, caindo fora antes de ceder à vontade de responder:
- Não levo porque se eu pego meu filho usando uma dessas, tiro no tapa! Pensando melhor, se eu desse um desses horrores de presente, eu é que levaria os tapas – e merecidamente.

Eu sempre me surpreendo ao ver como os turistas, ao chegarem depois de quatro horas de viagem, a uma vilazinha suíça “típica”, são capazes de passar quinze minutos visitado o local e duas horas nas lojinhas que se amontoam na praça central, onde são vendidas vaquinhas de cerâmica made in china, canivetes, relógios de marcas famosas que ninguém conhece, tocas de lã com orelhas felpudas, pratinhos com o Matterhorn em relevo dourado e mais canivetes. Ainda não vi um relógio-cuco de pulso, mas deve ter um por aí, esperando para ser comprado por um brasileiro.

Cansados mas contentes com as aquisições, suas memórias mais leves por já terem esquecido por onde passaram, os excursionistas voltam para sua base em seu hotel em Genebra, com os quilos de chocolate que compraram logo no início do dia.

É bem fácil saber onde estão hospedados: basta seguir o rastro de chocolate. As lindas barras obviamente não agüentam o calor infernal no ônibus e tentam escapar das sacolas e mochilas, pingando por todos os vãos e costuras.

Mais tarde, devidamente banhados e arrumados (dando um descanso para as suadas camisas da seleção) os turistas canarinhos resolvem cair na noite genebrina. No início, saem procurando um bom lugar para comer um fondue, beber um vinhozinho, ouvir uma musiquinha e quem sabe até dançar. A noite de domingo promete!

Depois de três horas vagando pelas desertas ruas da cidade, sem achar nada (nada mesmo) aberto, já estão dispostos a comer um cachorrão no carrinho da esquina, engolido com cerveja quente, mas o cachorreiro – como todo mundo aqui - não trabalha no domingo.

O jeito vai ser comer as bolachinhas secas que foram dadas na excursão e guardadas na bolsa para uma emergência como essa. Para beber, compartilhando o único copo plástico, água da torneira, branca e com gosto de giz. Estão com sorte: essa, pelo menos, sai bem gelada!

30 julho 2012

15. UM BOM CONSELHO.


Genebra, feito uma ilha, é um pedaço de terra suíça cercada de França por todos os lados.

Está ligado à Suíça propriamente dita apenas por um fiozinho de terra na direção de Lausanne e pelo lago, que também é francês em boa parte. Até para chegar ao Valais no lado sul do lago é preciso passar por um pedaço da França antes de entrar na Suíça novamente.

Encravado em território francês, falando francês, acelerando partículas subatômicas entre os dois países e até mesmo produzindo vinho francês, o cantão de Genebra é um pedaço de terra gaulesa que veio parar molhar os pés no lago e viro suíço - e eu nunca ouvi uma explicação convincente para isso.

Estranha situação, que não é apenas geográfica. Vai ver que é de propósito, para a Confederação Helvética ir se livrando aos poucos de Genebra e passando esse abacaxi para a nação vizinha, junto com todos os diplomatas e técnicos dos organismos internacionais que pesam no bolso dos suíços desde a Liga das Nações.

Estas instituições foram as responsáveis pela formação do caráter internacional de Genebra, que é uma cidade cosmopolita. Aqui se ouve de tudo nas ruas: inglês, português, sudanês, turco, hindi e até francês, de vez em quando.

Mas já não são mais os diplomatas e funcionários de colarinho branco que dão esse tom colorido à cidade: é a quantidade de candidatos a trabalhador que aporta todos os dias no cantão, onde é muito fácil entrar como turista e ir ficando, ilegalmente é claro, indefinidamente, pegando o trabalho que pintar.

Contei em outro post que tive de obter o passaporte europeu de animais para a Luna, minha nova ‘cã’. Quando fui buscar o tal passaporte uma senhora que fazia a limpeza no consultório da veterinária me falou:

- Pronto, painho... Eu já estou aqui faz dez anos e ainda não tenho meus ‘papel’... e sua cachorrinha que tem só quatro meses de vida já tem até passaporte!

Triste realidade onde os cães têm mais direitos que as pessoas, pensamos ambos, em silenciosa sintonia.

É facilmente observável o forte fluxo de trabalhadores pouco (ou nada) qualificados, que vêm para cá em busca de uma vida melhor ou do sonho de fazer um pé-de-meia e voltar para seu país depois de uns anos ralando por estas bandas.

Há também um razoável contingente de trabalhadoras do sexo, vindas da nossa pátria-mãe ou de outro pais europeu. Nesse caso, não me atrevo a falar nada sobre sua qualificação profissional ou seu domínio da língua...

Seja como for, não parece ser um negócio tão bom, o das raparigas. Certo dia ouvi uma moça conversando alto no seu celular, em bom ‘brasileiro’, enquanto fazia compras em uma grande loja de departamentos. A não ser que ela estivesse simplesmente querendo se livrar da concorrência, me pareceu um bom conselho:

- Não, amiga, não venha não... Aqui é tudo caro prá caramba! A gente dá, dá, dá e não consegue guardar dinheiro...

28 julho 2012

14. TRIBOS BRAZUCAS 1ª parte.

É bem interessante observar a paisagem etnográfica brasileira em Genebra. Até onde eu pude perceber, são três as grandes tribos brazucas aqui.

A primeira é a tribo, cada vez mais numerosa, dos brasileiros que aportam em terras genebrinas em busca de trabalho, ou melhor, de dinheiro. Não está incluída aqui aquela pequena minoria que vem em busca do seu próprio dinheiro, nos bancos suíços.

A segunda é mais high end, composta pelos diplomatas e pelo pessoal que vem trabalhar por uns tempos nos organismos internacionais com sede em Genebra, como a OMS (Saúde), OIT (Trabalho), WIPO (propriedade intelectual) a Cruz Vermelha e dezenas de outras. Essa tribo sofre críticas dos suíços porque não paga impostos mas se beneficia de todos os serviços públicos – o que, convenhamos, não é justo, mas quem está nessa categoria diz que essa é uma boa fórmula para o governo não desperdiçar os seus impostos: basta não recolher nada.

Um bom número de executivos, engenheiros e técnicos de empresas multinacionais com filiais no Brasil também cabem nesse primeiro grupo – mas esses pagam (imagino) seus impostos e levam uma vida à parte das outras tribos.

A terceira é a tribo dos turistas e estudantes “de intercâmbio” (sinônimos, para todos os efeitos). Vou comentar todas em posts próprios, começando hoje com a primeira, a dos ‘brazucas’.

Esta tribo é a mais corajosa. A maioria não fala nada de francês - nem de alemão ou italiano, idiomas oficiais, ou de inglês, a língua franca dos expatriados. Poucos sabem alguma coisa sobre o país para onde estão vindo e, sem falar o idioma e sem qualificação, só conseguem os trabalhos que não demandam expertise, geralmente braçais, sazonais, flutuantes, como o de diarista, ajudante de cozinha, mão de ajuda nos vinhedos e similares. Vida dura – mas, como disse um recém chegado, “comparada com o quê?”

Depois de um certo tempo aqui, alguns partem para a prestação de serviços para os demais brasileiros e tem até quem montou seu próprio negócio. Para cada um que deu certo, no entanto, existem vários que deram com os burros n’água; mas isso não é nada diferente do que acontece no Brasil e assim o pessoal não se abate e parte para outra, na terrinha brasilis ou em outros locais extranacionais.

Por falar em negócios, soube de um caso interessante. Os suíços são um povo tão estranho que nem as crianças gostam de coisas doces. Já os brasileiros... Duas brasileiras montaram aqui um negócio que parecia muito promissor: fazer doces para festas infantis. Pesquisaram e vira m que não havia nada de doces para aniversários, nem nos supermercados, nem nas panificadoras ou mesmo nas chocolaterias, só alguns bolos ruins e sem graça. Compraram então panelas e ingredientes, fizeram um panfleto e logo tiveram a primeira encomenda.

Depois dos parabéns, as crianças atacaram os docinhos e ... cuspiram tudo, no chão, nas paredes e nas outras crianças, fazendo caretas como se tivessem comido jiló (ou o equivalente deles)!

Acharam insuportavelmente doces os lindos brigadeiros, dois-amores e cajuzihos tão caprichadamente preparados pelas meninas com as receitas de suas avós (já falecidas, coitadas, diabéticas e obesas). As moças faliram por choque cultural.

Outras iniciativas dão muito certo: um dos empregos em alta é o de pastor – já tem muitos por aqui, pastoreando esperanças e sonhos dos emigrados. O de pinguceiro também, pois a ‘caipirina’ é um drink bem popular nos botecos da região

Depois de alguns anos nestas quebradas, muitos brazucas desenvolvem um estranho dialeto, uma mistura inusitada de português brasileiro, com expressões regionais, francês, inglês e outras menos cotadas. Um exemplo, que ouvi com esses ouvidos moucos:

- Seu Antonio, to aperreado. Não deu pra mim chegar antes porque eu já tava no bus quando vi que tinha esquecido a minha carte d’abbonement e tive de voltar lá no parking onde eu tinha ido fazer um replacé no weekend. Aí tive de pegar o tram, descer na place ali do lado da Mairie e vir picando a mula. No caminho ainda passei no marché e comprei uns produits de bricolage pra gente ajeitar umas coisinhas na salle de bains ... Se o senhor puder me voltar la monnaie, eu agradeço beaucoup!