20 setembro 2012

20. MAGOO NO TRÂNSITO.

Se o velho Mr. Magoo tivesse se aposentado em Genebra, teria sua vida (e a dos que o cercavam) muito facilitada.

Uso o passado porque na minha infância Mr. Magoo já era velho e assim já deve ter batido as botas, para usar uma expressão da época. Personagens também morrem, não por causa da idade, mas por nosso esquecimento - como mostrou Neil Gaiman em Deuses Americanos.

Da mesma forma, penso eu, podem ressuscitar pela lembrança. Foi o que eu fiz com o Mr. Magoo, depois que passei a enxergar muito mal em função da minha retinopatia. Fui me lembrando dele aos pouquinhos e quando percebi já saía para passear com ele, estava pegando ônibus a seu lado e fazendo compras na sua companhia. Consequentemente, ia me identificando com ele cada vez mais à medida em que tentava aprender a conviver com a minha deficiência (sem eufemismos, por favor – é deficiência mesmo) visual.

Acho que comecei a ver a cidade com os olhos do Mr Magoo (quase literalmente, porque ainda não estou tão ruim como ele) pela mágica da empatia, me colocando nos seus sapatos. Por isso posso dizer que, se ele vivesse aqui, seu sobrinho não teria tanto trabalho, pois o velhinho provavelmente seria capaz de sair sozinho sem causar muita confusão. A cidade está preparada para os magoos como ele e eu.

Explico: o conjunto de recursos que Genebra oferece para pessoas com deficiências visuais é muito grande. A começar pelas faixas de pedestres, que estão em toda parte, a cada quadra praticamente, amarrando o trânsito mas facilitando a vida de quem precisa cruzar as ruas para o outro lado de lá (que é onde sempre estão os lugares para onde queremos ir).

Todos - com exceção dos ciclistas - param para que os pedestres possam passar: basta chegar perto da faixa, não é preciso nem colocar o pé na rua. É uma boa sensação sentir o poder de parar todo o tráfego sozinho, nos dois sentidos, sem fazer mais do que ameaçar querer atravessar a rua!

Os motoristas que vêm de países onde imperam os carros não se adaptam muito bem a esse esquema. Aprender a parar, é claro, mas vão se irritando no trajeto, inexplicavelmente. Não vejo motivo para nervosismo só porque às vezes tem duas faixas na mesma quadra, com um sinaleiro na esquina seguinte...

A lei de Murphy é implacável: todo sinal estará verde até o pedestre acabar de atravessar a faixa; assim que o motorista arrancar o sinal fechará. Logo que abrir, o carro poderá avançar uns 100 metros e mas já terá de parar de novo, na próxima faixa, pois lá vem um velhinho de bengala batucando na rua como se estivesse caçando uma barata. Dá até para enxergar a linha pontilhada que ele vai traçando no chão, rumo à receptiva faixa.

Alguns procuram acelerar para chegar na faixa antes do velhinho e por isso os cem metros antes das faixas são locais perigosos para quem não vê bem e erra o local da travessia. Os motoristas podem roer as unhas, mas como é bom ser pedestre nessa hora e poder sair para fazer as comprinhas diárias, sabendo que vai poder atravessar a rua onde precisar, sem correr o risco de virar parte do asfaltamento!

Nos poucos dias que fui ao Brasil quase fui atropelado - porque me distraí (duas vezes) ou porque, não havendo faixa nem sinal até onde a curta visão alcançava, tive de arriscar uma bisonha corrida por entre os carros para cruzar a rua. Sei que corria meio de lado, me preparando para virar de bunda para o veículo que tocasse em cima de mim, ingenuamente imaginando que assim iria me machucar menos.

Ainda bem que meu problema é só a visão e ouço muito bem. Se fosse meio surdo também seria um risco enorme, pois não teria escutado nem as buzinas nem os berros de “sai da frente, moleza” ou de “acelera, lesma!” que me alertaram para a perigosa e crescente proximidade de carros e motos. De certa forma, gritos e buzinas funcionavam como o disparo de um revólver no atletismo e eu saía na disparada para os meus dez metros rasos com barreiras.

Quem tem uma boa visão periférica são os motoristas de ônibus, que, como os nossos, são exemplos de educação e gentileza para com os passageiros. Se o motorista percebe que uma pessoa vai perder o ônibus se ele arrancar, ele espera. Isso às vezes é irritante para quem está no ônibus e tem pressa (suíços não têm essa palavra no seu dicionário) mas todos aceitam sem chiar.

Já vi um motorista esperar uma senhora que estava do outro lado da rua apertar o botão para fechar o sinal, aguardar o sinal fechar, atravessar calmamente, ir até a máquina de bilhetes, abrir a bolsa, procurar as moedas, comprar o bilhete e finalmente subir no ônibus. Tudo isso em menos de vinte minutos! E todo mundo aguardando em paz.

Igualzinho ao comportamento que vi nos nossos ônibus comuns e intermunicipais - com a pequena diferença de que os motoristas brasileiros parecem esperar de propósito que a pessoa coloque um pé no ônibus para então arrancar (o ônibus e a perna que ainda estava na calçada). Dessa forma prestam um serviço social, pois contribuem para o alongamento diário e o aumento da elasticidade dos passageiros, principalmente de quem anda meio travado.

Para ajudar mais ainda, eles procuram parar bem longe da calçada para que o passageiro tenha de esticar bem a perna para alcançar a escada – e só arrancam quando os músculos estiverem no seu máximo, para causar o maior benefício possível. Devem ter sido muito bem treinados, por isso exige uma boa coordenação e reflexos rápidos. Em Genebra, os motoristas não são tão considerados e deixam que as pessoas cuidem de sua preparação física em outros locais e horários.

 Nos ônibus e trams quem não enxerga bem é auxiliado pela voz que anuncia a próxima parada. surdinhos podem olhar os monitores que, em vez de comerciais, passam a rota e mostram os pontos seguintes. Se nada disso der certo, o passageiro pode perguntar ao motorista! Não vi, mas não me surpreenderia se visse uma plaquinha dizendo: “Fale com o motorista sempre que precisar: ele terá prazer em auxiliar você”.

Outros recursos ajudam a tornar uma saída de casa mais um passeio do que uma aventura na selva, para quem tem alguma dificuldade física. Nas esquinas com sinal de trânsito, por exemplo, cegos podem tocar no poste com sua bengala e o sinal vai fechar para que ele passe, soando um bip até abrir novamente. E tem um tempo real entre o piscar do sinal do pedestre e a abertura do sinal para os carros. Sim, sei que no Brasil também tem – mas é algo em torno de um décimo de segundo e sempre vai abrir quando gente estiver bem no meio da rua; não dá para chegar ao outro lado intacto sem colocar velocidade olímpica nas passadas.

Um urbanista me disse certa vez que Curitiba não adotou as faixas de parada obrigatória de veículos para “não atrapalhar mais ainda o trânsito”. Trânsito de quem? O meu trânsito está sempre atrapalhado quando saio a pé na minha querida cidade natal. Aqui me sinto muito mais seguro, com tantas regras e normas que protegem o pedestre e não os carros.

Essas regras todas, no entanto, não se aplicam aos ciclistas. Ou melhor, muitos deles não se aplicam às regras. Ciclistas são um estranho híbrido de pedestre e motorista: não sendo motorizados, se consideram pedestres quando houver vantagem nisso; mas como andam sobre rodas, se consideram motoristas quando acham conveniente. Querem o melhor dos dois mundos e ignoram as regras de ambos. Estes ciclistas constituem o maior risco à integridade física dos magoos que, como eu, depositam cega (ops!) confiança na proteção das faixas.

Patinetes também são um perigo. Ubíquotos por essas bandas, utilizados por crianças pequenas, jovens e até adultos (na idade, pelo menos), esses veículos impulsionados por patadas trafegam em ruas e calçadas indiscriminadamente.

Uma das minhas visitas olhou espantada quando um menino passou por nós montado em seu patinete: "Olha, um skate de duas rodinhas só!" me disse ela. Quase respondi que não era skate, não, era uma bicicleta bem baixinha, com tablado!

Patinetes têm uma tropia positiva pelas canelas dos incautos e ceguetas que não vêm a tempo o bólido se aproximando. Dado o fato de que patineteiros freiam virando o patinete de lado, o que pega na sua perna é a justamente tábua, geralmente dando uma pancada quebra-tíbia muito dolorida. O jeito é saltar, o que evita a tabuada mas provoca o encontro choco de duas cabeças no ar.

Tirando ciclistas e patineteiros, é uma tranqüilidade sair a pé pela cidade. Há um aplicativo (que se pode acessar no celular, tablet ou computador), que avisa certinho quanto tempo vai demorar até o próximo ônibus chegar no ponto. Como já se usa GPS para controlar a frota, não precisa muito mais para disponibilizar essa informação para os passageiros. Isso é muito bom, mas o melhor é que o app também informa a melhor rota para você chegar de um ponto a outro, estima a duração da viagem e informa quanto tempo um trajeto a pé levaria entre os dois pontos desejados. Você faz as contas e muitas vezes vê que vale a pena ir a pé. Mesmo que seja um pouco mais demorado, você pode constatar que indo a pé você ainda vai chegar no horário, ganhando em saúde e poupando algumas moedinhas.

Isso sim incentiva as caminhadas! Com tantas faixas e sinais, boas calçadas, respeito dos motoristas e muita segurança pública, ser pedestre por aqui é muito fácil. Não que eu tivesse muita escolha, pois já não dirijo faz tempo. Bem, eu poderia dirigir se quisesse, mas magoo como ando os outros motoristas reclamariam um pouco, eu acho. Talvez os velhinhos nas faixas de pedestres até gostassem de alguma excitação e da oportunidade de fazer algum exercício!

Quando eu voltar para o Brasil não sei como vou me readaptar. Já estou procurando um veículo anfíbio de pequeno porte, megablindado e com piloto automático, que me permita transitar por aí sem grandes riscos. Algum sobrevivente tem um para vender?

12 setembro 2012

19. MOFANDO NA FILA.

A educação suíça é fantástica, mas pode ser extremamente irritante, como no caso das faixas de pedestres (quando se é motorista) ou das ciclovias (quando se é pedestre), já comentadas em blogs anteriores. Já comentei também a falta de pressa que é padrão por aqui, onde só corre quem está fazendo jogging ou tentando pegar um ônibus que está quase saindo.

Existem lugares onde as duas coisas – educação e lerdeza - se juntam de uma forma exasperante, como nos supermercados. A começar pelos dias e horários de abertura. Supermercados não abrem aos domingos. Ponto final. Só o do aeroporto abre por algumas horas e alguns (poucos) mercadinhos de turcos e indianos espalhados pela cidade. Supermercados também não abrem nos feriados e tampouco à noite: fecham às 18 ou 19 horas todos os dias, menos às quintas, quando fazem um esforço sobrehumano para atender até as 21 horas.

Resumindo: você só pode fazer compras em horário de trabalho ou aos sábados, disputando espaço com todas as demais pessoas que não puderam dar uma escapadinha durante a semana para fazer suas compras essenciais.

O pior é que nem dá para sair dando cotoveladas, empurrões, rasteiras e outras técnicas usuais nos supermercados brasileiros; aqui a educação prevalece, mesmo às custas da sanidade.

Quer um teste infalível do grau de seu controle emocional? É só entrar em uma fila em qualquer dos caixas em um supermercado e você vai saber rapidinho se já está integrado ao modo suíço de viver ou se, pelo contrário, o seu acelerador interior continua ligado.

Tenho oportunidades quase diárias de fazer esse teste e ainda não consegui passar. Veja um exemplo, tirado de um dia típico de enfileiramento em um dos supermercados perto de casa.

A fila em que eu estava tinha quatro pessoas à minha frente. Somente quatro pessoas: uma moça, uma velhinha, um menino de uns dez anos e um senhor. A primeira já estava terminando de passar as suas compras quando escolhi aquela fila. "Vai ser rapidinho", pensei eu. Não poderia estar mais enganado...

Vi que a moça esperou até a caixa apresentar o ticket para só então abrir a bolsa, procurar nas profundezas alguma coisa por uns dez minutos e tirar de um compartimento lateral uma carteira pesada, da qual abriu diversos zippers até encontrar uma carteirinha com seus cartões de crédito (uns vinte). Tudo bem devagar, como se estivesse imersa em gel. Sem alterar o seu ritmo, foi navegando pela pilha de cartões, olhando cada um como se fosse uma fotografia de uma pessoa querida, até achar o que queria usar - e aí finalmente efetuar o pagamento. Arre!

Essa rotina não tem nada de incomum: acho que faz parte de algum treinamento de clientes femininas, pois quase todas se comportam dessa mesma forma. Isso quando não resolvem pagar com vales, cupons e outros papéis que a caixa terá de conferir, um por um, ver a data de validade e anotar seus números de série num caderninho ensebado e manchado que todas guardam em baixo do computador (esse é um mistério que ainda não solucionei: se elas têm um computador, por que é que precisam daquele caderninho?).

Enquanto isso, na fila, todos esperam, sem piar nem chiar. Nada dos educados comentários que ouviríamos no Brasil, como “vai cozinhar aí mesmo?”, “alguém morreu aí na frente?” e “vamos fazer uma vaquinha e pagar pra ela, aí ela libera a fila!”. Nada disso. Todo mundo quietinho face à adversidade.

Para testar um pouquinho mais a paciência e o treinamento de todos, a caixa espera até que um cliente guarde todas as suas compras, para começar a atender o próximo. Claro que não existem empacotadoras e na maioria dos mercados nem sacolas plásticas são fornecidas; as de papel são cobradas à parte. As pessoas levam as suas próprias sacolas, carrinhos, mochilas e outras traquitanas – as quais, por uma nova lei de Murphy, sempre serão menores do que o volume das compras realizadas.

Esperadamente, no caso da moça que empatava a fila, essa lei foi aplicada integralmente. A sacola que ela havia levado caprichadamente dobrada não comportou as compras e ela decidiu pegar uma sacola de papel. Depois de gastar uns decaminutos escolhendo a estampa mais bonita, descobriu que não tinha dinheiro vivo para pagar pela sacola, desencadeando novamente toda aquela rotina de abrir bolsa, bolsos e carteirinhas para pegar o cartão.

A fila, já coberta de teias de aranha, esperava impassível. Alguns já se sentaram sobre as cestinhas e abriram seus jornais; outros puxaram seus ipads e começaram a jogar (obviamente) paciência; a maioria desandou a fazer ligações e a conversar no celular com deus e todo mundo. Desconfio que as telecoms dão uns prêmios para as caixas mais enroladas, pois quanto mais demoradas as filas, mais tempo as pessoas falarão nos seus telefones. É uma teoria da conspiração bem realista...

Ainda tem mais! As maiores cadeias de supermercados têm muitas unidades de vizinhança, como as que eu vou na nossa commune. Em dias de semana a idade média dos clientes nesses mercados menores deve estar lá pelos oitenta anos. Eu me sinto jovenzinho naquela clientela!

A velhinha que estava aguardando pacientemente a moça pagar, resolveu se mover para passar a sua compra. Vi que tinha na sua cestinha somente uma baguette, um queijinho azul e uma latinha de ração para gatos. Notei, feliz, que ela já trazia na mão uma nota de dez francos. "Essa vai passar rapidinho", pensei eu. Ledo engano! Ao pegar a comida de gato, a caixa pergunta para a velhinha, tratando-a com familiaridade:

- É para o Boubou? Faz tempo que não vejo aquela lindeza!
- É sim. Ele anda muito enjoado ultimamente, não come qualquer comida e vem emagrecendo. Vou tentar essa daqui, com atum, para ver se ele come.
- Não me diga! Sabe, eu tive um gato que não comia nada, mas passei a preparar eu mesma a comidinha dele e ele ganhou peso depressa.
- Ah, é? O que você dava para ele?

E a interessantíssima conversa segue nesse pique por várias dezenas de voltas do relógio (que eu contei uma a uma) para meu desespero. “Troca esse gato por um cachorro e pronto – libera a fila!”, tive vontade de gritar, mas me contive ao me lembrar da quantidade de felinófilos que existe por aqui. "Paciência, paciência", falei com meus botões; "a velhinha está se despedindo e já está chegando a minha vez".

A senhora entregou a nota de dez francos amarrotada para a caixa, que pediu 17 ou 20 centavos para facilitar o troco. "Acho que tenho", disse a senhora, abrindo a bolsa em busca da moedeira, que encontrou depois de apenas uns vinte minutos de lenta procura. Aberta a moedeira, foi tirando dali moeda após moeda, que ia passando para a caixa ver o valor, guardar as que serviam e devolver as que eram de valores maiores ou eram euros, não francos. E a fila, tranqüila e comportada, olhava com simpatia (ou apatia) a velhinha fazer a sua comprinha diária. Eu, contrastando, já estava querendo fazer as duas comerem as moedas no chá das cinco.

Aí chega a vez do menino, que só tinha um refri para passar. "Agora anda", pensei, animado. Triste ilusão, quebrada quando o moleque tirou da mochila uma pilha de contas para pagar. Me senti voltando no tempo e no espaço, teletransportado para uma fila em um banco brasileiro, com o menino suíço se transformando em um offfice-boy, daqueles que materializam do nada duplicatas e carnês a pagar. A caixa foi dando entrada conta por conta – e cobrando uma por uma, pois os sistemas não são interligados. E a fila, quietinha; nem ao menos olhadas ostensivas para o relógio acompanhadas de fungadas e suspiros.

Depois de uma rápida eternidade o moleque pagou o seu refri e liberou a posição para o senhor que estava à minha frente. "Só mais um!", festejei. Nesse momento, a caixa coloca um aviso dizendo que tinha ido buscar troco no setor central (aqui não tem, como no Brasil, aquela moça que faz isso para as caixas) mas já voltava. Saindo bem devagar, foi troando palavras gentis com as outras caixas e com os clientes que reconhecia no caminho. Idem na volta. E eu ali na fila, criando raízes e musgo.

Finalmente ela voltou, reabrindo o posto – não sem antes guardar todas as moedas em seus respectivos compartimentos, cuidadosamente - e o senhor começou a passar as suas coisas. Ele era bem eficiente e num instante passou uma quase uma cestinha cheia. Quase.

A coisa fica feia quando o leitor de código de barras não lê uma etiqueta ou quando o cliente esqueceu de pesar algum produto e colar a etiqueta ou ainda quando o cliente desistiu de levar alguma coisa. Em todos esses casos, quem vai até as gôndolas trocar, pesar ou devolver o produto, é o cliente, pois não existem aquela mocinhas que ficam por perto dos caixas prontas para essas e outras emergências. Às vezes, no caso de clientes de mais idade, as caixas, em mais uma demonstração da educação helvética, deixam seus postos e vão elas mesmas trocar ou pesar o produto em questão, para que poupar o esforço ao idoso.

Evidentemente, isso aconteceu com a última peça da compra do senhor, que havia esquecido de pesar e etiquetar suas nectarinas. E lá se foi a caixa, solícita, resolver o problema pessoalmente. Na fila, eu já estava soltando fogo pelas ventas, como uma mula-sem-cabeça.

Chegou a minha vez, inacreditavelmente. Para acelerar um pouco, eu ia batendo escanteio e saindo para cabecear: passava parte das compras, ia empacotando o que dava tempo enquanto a moça registrava e voltava para passar mais alguns produtos. A coisa estava indo bem, até que aconteceu uma travada no bom fluxo. Vi a caixa examinando atentamente um dos limões que eu havia escolhido.

- Este aqui está começando a mofar. É melhor o senhor ir pegar outro – me disse ela. -
- Não! respndi, exasperado. Pode deixar, eu levo assim mesmo!
- De jeito nenhum, nós não vendemos produtos de segunda qualidade. O senhor tenha um pouco de paciência que eu vou trocar!

E lá se foi a moça, naquele passo de lesma anestesiada, até o setor de alimentos frescos, substituir gentilmente o meu limão quase mofado. É tanta gentileza que dói!

Quando finalmente consegui pagar a compra e colocar tudo na mochila, me toquei que tinha esquecido de comprar justamente o produto que me fez ir ao mercado em primeiro lugar... Até considerei voltar para pegar, pois o mercado já tem caixas de auto-serviço, nos quais se pode passar as compras sozinho, pagando com um cartão e ir embora, sem ninguém para conferir se tudo foi mesmo pago.

Eu me recuso a usar esse tipo de serviço; por princípio sou contra a automatização que corta empregos assalariados e usa o meu trabalho de graça. Além disso (pode não parecer) gosto do contato humano nas filas de caixas pilotados por moças tão educadas, com clientes tão simpáticos e sossegados. É uma verdadeira terapia para os estressados: ou você aprende a ter calma e relaxar, ou morre de nervosismo de uma vez, acabando com seu estresse para sempre!

Além disso, onde mais eu aprenderia o que se dá para um gato anoréxico?

03 setembro 2012

18. O PORTUGUÊS HELVÉTICO.

O título completo desse post deveria ser "O português helvético: como ser literal na terra da precisão", mas faltou espaço.

Brasileiros se divertem contando piadas de português, nas quais os nossos irmãos lusitanos são caricaturas vivas de uma típica.... simplicidade, digamos. Eu gosto mais de contar alguns casos presenciados pessoalmente, ou ouvidos de fontes seguras, que revelam uma característica marcante do povo português: a sua tendência a interpretações literais. Veja só do que eu estou falando.

Um amigo com quem convivemos muito tempo no Brasil estava vindo para Genebra em um vôo Brasília-Lisboa, com conexão para cá. Na altura da “refeição”, a aeromoça pergunta para o nosso amigo:

- O senhor aceita o jantar?
- Aceito, obrigado. Qual são as opções? pergunta ele.
E a portuguesa responde:
- Sim – ou não...

Esse tomar das palavras pelo seu valor nominal causa embaraços mil para os brasileiros que tentam se comunicar com os lusitanos genebrinos. Entrei em uma mercearia portuguesa há umas semanas atrás, procurando alguns produtos brasileiros que eles sempre têm por lá e reproduzo o dialogo com a dona da loja. Quase ipsis literis...

- Bom dia. A senhora tem azeite de dendê?
- Tenho sim. E ficou parada, me olhando com um semi sorriso.
- A senhora poderia ver para mim?
- Ora veja o senhor mesmo: está ali bem em cima, disse, apontando para a prateleira atrás dela.
- Sim, estou vendo, falei meio irritdo, mas a senhora poderia apanhar para mim?
- Poderia, sim, se o senhor acaso mo pedisse.
- Estou pedindo! Por favor, eu quero comprar aquela garrafinha ali!!!
- Pois não. Agora o senhor está sendo claro... São três francos e vinte centimes.
- Está bem, aqui estão... quatro francos.
- Eu não tenho troco, então serão quatro francos.
- Mas a senhora não pode cobrar a mais só porque a senhora não tem troco!
- Posso sim, o que não posso é vender com prejuízo. Isto é um magazin de importados, não uma casa de caridade!
- Não, assim não dá, onde já se viu! Eu pago três francos e depois trago os vinte centavos.
- O senhor está pensando que somos um banco, para dar-lhe crédito?
- Então não levo, pronto! disse eu, indignado. Ao sair da loja, ouvi a literal senhora dizer para alguém que devia estar atrás daquela inevitável cortina que dá sabe-se lá para onde:
- Estes brasileiros são assim mesmo. Fazem a gente perder tempo e saem sem levar nada. Pensam que estamos para brincar aos merceeiros...

Quem vier do Brasil para a Suíça tem de tomar muito cuidado com o que comenta com outro brasileiro em público, porque as chances de que alguém que estiver por perto entenda português é muito grande. A população portuguesa é a terceira maior dentre as de origem estrangeira na Suíça, quase igual às italiana e alemã (1ª e 2ª). Se somada ao crescente número de brasileiros e lusófonos africanos, dá para arriscar que aproximadamente uma a cada dez pessoas daqui entende português o suficiente para te dar uma resposta atravessada - ou um plantar um tapa na tua orelha – se você fizer algum comentário desairoso. Segure a língua!

Uma brasileira me contou que sua mãe venho visitá-la e quando estavam ambas no tram, entra um senhor e dá um forte esbarrão na senhora, sem se desculpar. Ela reclama para a filha, bem alto:
- Nossa, que grosso!
Ao que o homem replica, em bom português:
- Ora pois, a senhora sentiu?

Nossos irmãos de além-mar (aqui o certo seria dizer “aquém-mar”) não são muito conhecidos por sua gentileza, o que destoa do contexto suíço. Posso estar generalizando injustamente, mas vivi uma situação dessas e posso atestar.

Estava eu em um prédio comercial, procurando um escritório em um longo corredor. Como aqui eles não usam números, mas sim nomes, eu tive de ir de porta em porta tentando ler as plaquinhas no escuro do corredor. De uma delas saiu uma mulher, deu de cara comigo, se assustou um pouco mas disse, a la suisse:
- Pardon, monsieur! Desolée...
Mais adiante, um jovem, ao sair de outro escritório, me deu uma leve esbarrada mas logo me falou, britanicamente:
- I’m so sorry!
Aí sai do elevador um senhor apressado, me dá um encontrão daqueles de deslocar a clavícula, me arremessando até a parede oposta e ainda me diz, em português bem português:
- Ó pá, não vês por onde andas?

Mudando um pouco o foco, vejam o que me contou um amigo na semana passada. Tendo se mudado para Genebra há seis meses, ele já estava morando no ap que tinha alugado mas ainda aguardava a chegada da mudança - e nada de notícias. Cansado de tanto esperar suas coisas e de ligar para a companhia brasileira de despacho, finalmente ele consegue localizar a mudança, que estava parada há meses no depósito de uma empresa portuguesa em Lisboa, com o inspirado nome de... Transportadora Senhora da Agonia!

Só faltou ser na rua Senhor dos Aflitos. Essa transportadora disputa o troféu de nome mais “português” com a Funerária da Boa Hora e Ajuda, também em Lisboa e o Hotel Residencial O Cortiço, em Beira. A campeã brasileira é a empresa de instalações elétricas Armagedon, de Curitiba! Bem, estou desviando do assunto...

Eu ia dizer que os negócios portugueses em Genebra têm nomes como Retardo Magazin de Vins (quem, o dono ou o freguês?) e Demolidora e Construtora Silveira (se fosse o contrário seria um problema!). Os nomes de restaurantes portugueses, por exemplo, variam do óbvio (Le Portugais) ao inescrutável (Les Schtroumpfettes!).

Esse jeito português de dar nomes literais aos bois chega até às profissões. Li, no placar médico externo de uma clínica aqui em Genebra: Dra. Cláudia Barriga - Medicina Interna. E notei mais adiante: Dr. Plauto Machado – Ortopedia. Procurei, e não achei, o nome do proctologista - mas fiquei imaginando!

Enfim, as histórias são muitas e os causos abundantes. Com casos assim, quem precisa de piadas prontas?