E lá fui eu, pela quarta vez
em dois anos, para minha cela no hospital universitário. Não vou dizer que me
sinto em casa ali porque se minha casa fosse daquele jeito eu já a teria
queimado há muito tempo, mas a sensação de familiaridade com o local e as
pessoas é bem marcante.
Dessa vez, com todo mundo aproveitando o
feriado de Páscoa - o único, tirando o Natal, em que se dá uma esticada - os dias se arrastavam sem que eu visse
um médico sequer, fora a tímida residente que vinha me perguntar irrelevâncias
uma vez por dia. Pedi várias vezes para falar com um médico, de qualquer
especialidade, sem sucesso. No sexto dia até psiquiatra eu já estava aceitando
– talvez necessitando – para saber algumas coisas essenciais, das quais a mais
importante era, sem dúvida,“quando é que vou poder voltar para casa?!”
Mas nada. Ninguém aparecia,
com exceção das enfermeiras que vinham coletar líquidos diversos e me acordar
várias vezes de madrugada, com requintes de crueldade, para medir a pressão e
outras bobagens que fazem para encher o tempo delas.
Quando trouxeram para
dividir o quarto comigo o Mad Max (vide post número 3), eu decidi que eu mesmo iria
me dar alta para sair dali. Tentei mais uma vez conversar com um médico mas
eles deviam estar todos em alguma praia de pedras se bronzeando na chuva. Aí
preparei em silêncio a minha mochila com as minhas coisas (que eu tinha
conseguido tirar do armário onde ficaram guardadas), liguei para a Mari vir me
buscar e saí do quarto sorrateiramente.
Olhei o corredor, de um lado
e de outro; ninguém de branco vinha vindo, só uma velhinha de camisolão empurrando
seu pedestal com soro e um senhor de cadeira de rodas. Ambos não poderiam me
perseguir, se fossem espiões da direção (nunca se sabe) então fui para uma sala
de espera convenientemente localizada fora do ângulo de visada do posto de
enfermaria e fiquei ansiosamente esperando a chegada da minha assecla.
Quando ela chegou eu já
tinha tido tempo para tomar algumas providências essenciais para a fuga. Tinha
tomado posse de uma tesoura e cortado a minha pulseira de presidiário, que
joguei fora, ritualmente, em um recipiente de lixo hospitalar. Tinha vestido
minhas roupas civis e escondido o camisolão em baixo do colchão antes de sair
do quarto (os pés descalços poderiam me trair, mas manter as pantufas azuis com
a logo do hospital seria pior). Tinha comido algumas coisinhas para ter energia
para a escapada – uma maçã e uma cenoura que eu tinha contrabandeado para
dentro do hospital . E tinha tirado o tubo de
medicamentos do braço para não ter de carregar o pedestal feito a velhinha
do corredor.
Na realidade, não tirei
sozinho, mas contei com a ajuda contrariada de uma auxiliar de enfermagem que
passava por ali. Tendo aprendido com as mulheres, fui logo dando a ela duas
opções:
- “Ou você tira para mim ou eu tiro sozinho; nesse caso, vou ter uma hemorragia fatal e você vai levar a culpa”.
Um pouco de drama não faz mal e deu certo, dessa vez. Quando a Mari apareceu eu já estava pronto para fugir daquele spa de segurança máxima.
- “Ou você tira para mim ou eu tiro sozinho; nesse caso, vou ter uma hemorragia fatal e você vai levar a culpa”.
Um pouco de drama não faz mal e deu certo, dessa vez. Quando a Mari apareceu eu já estava pronto para fugir daquele spa de segurança máxima.
O mais correto seria usar o
termo “auto-alta” e não “fuga”. Ao sair do elevador de serviço fui questionado
na saída por um assustador homem-de-branco, parecendo o fantasma do Shrek, que
me intimou:
- O senhor não é paciente, não?
Sem mentir, eu neguei
veementemente (paciente, eu? minha paciência já havia terminado há dias!). Ele
me olhou desconfiado, procurou e não achou a pulseira, me deu uma última medida
e seguiu seu caminho, provavelmente para ir buscar algemas.
Eu já estava com um pé na
liberdade quando uma das senhoras da recepção me chamou:
- O senhor está indo embora, por acaso?
Gelei: ela tinha me reconhecido!
Sangue frio nessa hora, disse a mim mesmo.
- Vou sim, acabei de ter alta, falei com voz segura, torcendo para ser verdade que as aparências enganam. Por um angustiante segundo
ela ficou me olhando, depois me deu um sorriso e um bonne soirée, que respondi
já de costas para ela e em movimento.
Pronto! Num átimo eu já
estava na rua, sem ninguém mais notar. Bem, talvez as quarenta ou cinqüenta
pessoas que estavam no saguão tenham estranhado um pouco ver alguém sair
correndo do hospital e dado uns bons pulos ao chegar na rua, rodopiando e gritando “Yes!
Yes!” e jogando o boné para cima, mas ninguém falou nada. Se um deles me
reconheceu como paciente, pode até ter pensado:
- Caramba, o tratamento daqui
dá resultado mesmo !!!
* leia abaixo as crônicas anteriores ou no Arquivo
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