30 abril 2012

7. A GRANDE ESCAPADA - parte 1

Atendendo inúmeros e insistentes pedidos, vou contar hoje como e por que fugi do hospital no meu último internamento. Antes de mais nada, preciso dizer que aqui em Genebra, terra calvinista, uma hospitalização não guarda muita diferença com uma detenção; hospital e penitenciária têm muitas coisas em comum. Os intelectuais vão logo lembrar de Foucault – ele tinha toda razão.

Em ambos você chega e é logo fotografado, medido e fichado. Todos os seus pertences são confiscados, catalogados e guardados para você pegar na eventualidade de sua saída. Uma pulseira com seu nome e número é colocada em seu pulso e não adianta querer tirar, não sai. Até hoje eu acho que a minha tinha um chip escondido que emitia um sinal que permite ao hospital localizar fujões pela cidade e diabéticos recalcitrantes em confeitarias e churrascarias.

Sobre a comida que servem aos coitados nesses dois pedaços de inferno eu já contei no meu primeiro post nesse blog e não quero mais pensar nisso para evitar acordar de madrugada pedindo em alta voz: - “um filé com fritas, por favor! só um filézinho.... será ninguém tem pena de um pobre prisioneiro esfomeado?” A comida insossa deve-se ao fato de terem sido os temperos confiscados na entrada, juntamente com suas roupas.

Falando em roupa, o camisolão que você é obrigado a vestir no hospital consegue ser pior do que o macacão dos presos. Azul-horrível, de risquinhas, veste-se como aquelas coisas que nos colocam em cabeleireiros. São amarradas atrás, mas você jamais vai conseguir fazer isso sozinho. Claro que é de propósito para te humilhar.

Humilhação que continua cada vez que você vai se sentar e puxa um pouco o camisolão para não te prender as pernas – e o distinto sai por um lado e mostra sua careca para embaraço de visitantes e pacientes. O pior é que você, meio dopado pelos medicamentos, pode não perceber e continuar calmamente a conversar com uma visita que não mais te olha nos olhos e está com a face hipervermelha. Você atribui isso ao calor terrível que faz naquele quarto fechado e não ao passeio de seu companheiro pelo espaço aberto inadvertidamente. Até você perceber o que está ocorrendo e tentar colocar o dito cujo de volta à sua reclusão camisolística, piorando a situação, é claro, quando ele, se recusar a voltar para debaixo do pano.

O tal camisolão é muito feio, desengonçado e desconfortável, mas cumpre a função de te identificar como interno em qualquer parte que você seja autorizado a ir. De qualquer forma, livrar-me desse vestuário e obter roupas civis passou a ser uma das prioridades do planejamento da minha fuga.

Tenho de admitir que eu sempre começei a planejar uma fuga antes mesmo de dar entrada, todas as vezes que fui preso, digo, hospitalizado. Mas nunca tinha tido oportunidade de realizar esse sonho, até ser internado para tratar de uma pneumonia da qual eu já tinha sarado, ou quase, antes do internamento. Eu me sentia bem, inteiro e disposto e não via razão para ficar ali, mas cedi aos argumentos da Mariângela, que delicadamente me dizia:
- “Ou você vai para o hospital ou quem vai sou eu!”.

Talvez eu estivesse dando algum trabalhinho para ela, mas essas mulheres são sempre terríveis quando vêm nos oferecendo opções. Você já sabe que vem chumbo quando elas começam uma frase em tom aparentemente tranqüilo e te dizem: “vou te dar duas alternativas”... pode saber que as duas serão ruins.

Minha médica cometeu esse mesmo crime de intimidação quando me falou, com vozinha de anjo-do-pau-oco:

- "Monsieur Simão, o senhor tem duas opções: ser hospitalizado ou cremado”.

Optei por ser hospitalizado.

25 abril 2012

6. FOI DECRETADA A PRIMAVERA

Suíços são estranhos seres que imaginam que seus relógios permitem controlar o tempo. Que outro povo teria a pretensão de decretar o início da primavera?

Pois é: aqui a primavera começa oficialmente, por meio de um decreto do conselho municipal, que registra a data em um pergaminho especial guardado na sede do conselho. Esta data varia de ano a ano, caindo em algum dia entre os meses de janeiro a abril, como demonstram os registros anotados há mais de 200 anos (!)

Mas em que se baseia o conselho para decretar o começo desta estação do ano? Em análises astronômicas precisas, quem sabe? Em estudos meteorológicos? Ou talvez em cálculos matemáticos de seus cientistas?

Não. Nada disso. Baseia-se em uma árvore.

Todos os anos funcionários do conselho municipal observam diariamente um velho carvalho na cidade velha, em busca do primeiro botão, ou florescência. Binóculos e outros recursos são usados pelo time de funcionários em sua missão, feito ufologos procurando disco voador.

Quando finalmente um deles consegue observar o primogênito botão, detona uma reação em cadeia que vai envolver desde os dirigentes municipais até escolas e toda a imprensa local. O dirigente encarregado faz o anuncio oficial, as escolas disparam “projetos” sobre a estação e os jornais estampam na primeira página: “A primavera está oficialmente decretada!”

É interessante notar que desde que as observações começaram a ser registradas, em 1808, o famoso botão de carvalho tem aparecido cada vez mais cedo, indicativo prático e visível do aquecimento global: invernos mais curtos, verões mais longos, menos frio para quem curte (como eu) e mais calor para os doidos que gostam de ficar torrando neurônios ao sol.



Outro estranho hábito genebrino é o que as gerações mais velhas ainda demonstram, a toda hora e em todo lugar: cumprimentar estranhos com um irritante “bon jour”.

Para quê, isso? Você vai passando calmamente na rua, imerso em seus pensamentos, na esperança de ter alguma ideia aproveitável e quando está quase repontando aparece uma velhinha toda sorridente e tasca o seu “bon jour, monsieur!” Você é obrigado pelas circunstâncias a responder – e lá se vai a sua concentração. Que coisa!

Em uma vizinhança mais movimentada a sucessão ininterrupta de cumprimentos não deixa ideia alguma surgir na sua mente, totalmente dedicada aos falsos bons dias e boas tardes dados a pessoas que você não conhece e não faz nenhuma questão de conhecer. Falo por mim, é claro.

Tem gente que diz que se trata de um sinal da educação suíça. Eu já acho o contrario: é falta de educação deixar de manter uma distância regulamentar de 10 metros de outro transeunte e mais ainda dirigir-lhe a palavra quando não é um parente ou amigo íntimo.

Por isso comprei um daqueles enormes fones de ouvido que a meninada anda usando e saio com ele tapando as orelhas (e metade da cabeça). Nem tenho um iPod, mas isso as velhinhas não precisam saber: vão pensar que eu passei reto por elas, sem responder ao seu bon soir porque estava ouvindo musica.

* nota: esse truque pode ser usado com igual eficácia em filas, reuniões, festas, ônibus, barcos e aviões.

Tirando essas mal-educadas interrupções da concentração alheia, Genebra é uma tranqüilidade. Moramos há quase dois anos em um sobrado enfiado no meio de dois outros, coladinho mesmo – e até hoje não troquei nem um único bon jour com meus vizinhos. Já os vi de longe, mas mantive aquela distancia a que me referi e tudo bem. Se eu respondo eles podem dizer mais alguma coisa polida e pronto: já virou conversa, cruz-credo, isola!

Meu lema é, apropriadamente, “cada macaco no seu galho” – e eu no meu, bem longe, evidentemente. Nada de intimidades como dar bom dia ou (horror) perguntar “como vai”? Tem gente que leva a pergunta a sério e conta! E eu lá quero saber como vai o distinto? Melhor perguntar “para onde vai”, para não correr o risco de ir na mesma direção.

Nesse aspecto, não posso me queixar dessa pacatíssima vila. Para terminar a rabugice de hoje, vou reproduzir aqui a exata descrição da cidade feita por um diplomata brasileiro:

Genebra tem o dobro do tamanho do cemitério de São João Batista no Rio de Janeiro - e metade da animação”.

Ótimo! Soa como música aos meus ouvidos, mesmo abafados por meus fones novos.

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22 abril 2012

5. O MITO CICLÍSTICO

Bicicletas são ótimas. Já os ciclistas....

Antes que meus amigos ciclo-evangelistas me desanquem, deixo claro desde já que sou totalmente a favor das bicicletas mas com os ciclistas eu ando implicando desde a minha vinda para esta cidade de trânsito complicado.

Imaginem uma rua com quatro pistas, na qual duas são reservadas para ônibus e táxis, deixando para os carros e demais veículos apenas uma pista em cada sentido. Isso seria tolerável se houvessem rotas alternativas, ruas paralelas ou outra saída. Não há: todo o tráfego tem de fluir por aquela via, sem choro. Imagine agora que essa rua liga um dos lados da cidade ao outro, separados pelo lago e por apenas duas pontes: é como uma ampulheta com areia grossa.

Coloque na mistura uma faixa de pedestres a cada quadra e note que todo o trânsito para completamente nos dois sentidos quando uma pessoa coloca o pé na faixa, o que, em alguns lugares como na frente de supermercados, é uma vez a cada meio segundo.

Em cima de tudo isso, acrescente agora uma ciclovia de cada lado dessa rua. Quando, depois de tudo, o trânsito começa finalmente a andar, um ciclista na extrema direita resolve dobrar na rua à esquerda. O folgado simplesmente aponta com o braço naquela direção e vai indo, sem nem olhar para trás – e todos os outros veículos - ônibus, carros, motos, tudo – emperra novamente para o ciclista calmamente cruzar quatro pistas engarrafadas e dobrar onde queria. Leeeentamente.

Para terminar, imagine uma fila inteira de ciclistas querendo fazer a mesma coisa. Terrível, mas eles conseguem dificultar ainda mais, vindo separados por uns 10 metros uns dos outros, de modo a que exatamente quando um carro começa a se mover tenha de parar de novo para o próximo ciclista. É uma maravilha da civilização que não aconteçam a toda hora atropelamentos de bicicleteiros por motoristas à beira de um ataque de nervos.

Se alguém perde a santa e incompreensível calma e reclama, ainda vai ouvir o ciclista comentar para o seu selim: “nossa, como motoristas são estressados!”

Sou mesmo. E olha que eu nem dirijo mais! Nem tenho horários rígidos para obedecer e tampouco motivos para ter qualquer pressa. Pura rabugice, eu sei, mas pelo que descrevi dá para ver que é engano acreditar que as bicicletas facilitam o trânsito. Puro mito urbano.

Posso pensar em vários outros mitos com relação a essas rodas engrenadas. Veja alguns.

Bicicletas são saudáveis. Nada disso! Depois de uma boa bicicletada o ciclista acaba comendo muito mais por ter o apetite aumentado pelo esforço inumano de pedalar. E como está cansado, tende a ficar sentado ou deitar para descansar, sem queimar as calorias da refeição reforçada. De onde se tira: bicicleta engorda!

Bicicletas são “naturais”.. Alguém já viu algum outro ser vivo ficar sentado enquanto corre?

Bicicletas são aprovadas por médicos. É verdade: ortopedistas e traumatologistas.

Bicicleta não polui. Errado! Você já teve sentar para trabalhar ao lado de uma pessoa que veio de casa pedalando – e mora a 20 quilômetros do escritório? Ou ficar em uma sala de aula sem ventilação, no verão, ao lado de um ciclista empedernido? Poluição é pouco para descrever a catinga, geralmente piorada com umas borrifadas de desodorante Axé.

Bicicletas são um meio de transporte muito prático. De onde tiraram isso? Em Genebra, como em Curitiba, os dias de chuva são muitos, revezando com dias de garoa e vento. Muito práticas as bicicletas nesses dias. Os que ainda assim insistem em sair de bicicleta viram um perigo maior ainda, pois têm de pedalar cheios de capas, capuzes e galochas. De capuz fica mais difícil ainda adivinhar de onde virá o próximo carro, que pode estar realmente próximo. Guardar uma bicicleta em casa, então, é muito prático! Basta subir nove andares pela escada com ela e estacionar bem no meio da sala, de onde o sofá teve de ser removido para dar lugar às duas rodas. Se a sua família for toda de ciclistas provavelmente as camas também terão de sair para dar espaço para as bykes no ap.

Bicicletas são seguras. Ah, é? Com a velocidade e a falta de um para-brisa, insetos entram no olho do ciclista e chegam até a retina, passando por lentes de contato e tudo. No verão as gotas de suor pingam no seus olhos, queimando a córnea e tirando a visão por preciosos segundos. No inverno são a garoa e o vento gelados que atrapalham a visibilidade, alem de enrijecer a musculatura. Um fato é certo: não existe ciclista que nunca caiu, nem que nunca vai cair de novo, pois todos têm um tropismo pelo chão.

Bicicletas são silenciosas. Os ciclistas hoje andam com seus ipods plugados e não ouvem buzinas e alertas, levando os motoristas a buzinar e berrar mais alto ainda, aumentando a poluição sonora.

Enfim, carros são ruins, motos são perigosas, metrôs são caros, ônibus são cheios, bicicletas são tudo isso que mencionei. Como ir e vir?

Sobram charretes e carroças, mas são puxadas por cavalos - que relincham, mordem e derrubam montanhas de capim aromático processado na rua. Por último, resta o pé-dois, que cansa demais, é demorado, gasta solas e causa bolhas.

Assim, prego uma cidade sem qualquer meio de transporte. Todo mundo em casa, sem sair! Aí todos, reclusos e isolados, poderiam pedalar suas ergométricas na segurança e no conforte do seu lar, pensando sobre os problemas do mundo e ranzinzando para o bem da humanidade, como eu.

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17 abril 2012

4. SOBRE ONIBUS, CÃES E JUMENTOS

Pierre é um pastor alemão do qual se conta uma história curiosa aqui em Genebra. Dizem que todos os dias úteis ele acompanha seu dono até o escritório. Os dois saem logo de manhã cedinho, do bairro onde residem, na periferia e vão caminhando (cachorro caminha?) até o entro, perto do lago. Chegando lá, o dono do cão sobe para o trabalho e Pierre volta para casa. Sozinho.

De ônibus!

E paga passagem e tudo. Aqui cachorros podem usar o transporte público, pagando meia passagem. Devem ficar sempre deitados aos pés do dono, bem quietinhos – e assim são vistos, pequenos e grandes. Mas sozinhos, dizem que só o Pierre. Parece que os motoristas já estão acostumados com ele, que entra e deita lá na frente, e espera que os motoristas abram a porta para ele descer no ponto certo. Dali ele vai para casa, onde entra não sei bem como. Talvez tenha uma chave, sei lá (espera-se tudo dos cachorros daqui), ou saiba bater a campainha. Pode até ser que more em apartamento e saiba subir de elevador....

A famosa educação suíça chega aos cachorros, sim. Num dia desses eu estava almoçando em um bistrô quando entra um senhor de idade com seu poodle. Sentam-se lado a lado, em um banco de uma mesa perto da janela, bem quietos. O dono pede o plat du jour – almôndegas com batatas e cenouras. Chega o prato e o senhor vai se servindo e dando bocadinhos na boca do cachorro, que come como gente fina. Os dois nem conversam, entretidos com a refeição. Ninguém repara na dupla, só eu, que como dono de cachorro também, tenho de prestar muita atenção mos hábitos e regras vigentes na cidade.

A Luna está demonstrando que a educação se adquire, até a canina. Por exemplo: antes ela cheirava e comia de tudo o que achava no chão nas nossas caminhadas; agora, bem mais educada, só come o cocô dela mesma. Não deixa mais comida espalhada pela casa; está mais comportada mesmo. Há uns dias roubou um pedaço de pizza de cima da mesa e enterrou em um vaso de cheflera da Mari, para comer mais tarde, na hora certa da refeição. Boa menina!

Só me preocupei no dia em que ela apareceu com um bicho alado morto na boca. Entrei em pânico! E se alguém visse e pensasse que foi ela que matou o passarinho? Do jeito que eles são por aqui, poderiam querer sacrificar o animal, ou quem sabe, o dono! Joguei o finado no lixo, em outro bairro, é claro, e me livrei de uma punição certa.

O cuidado com os direitos dos animais é muito grande por estas bandas. Vide o Pierre. E tem mais!

Li em um jornal uma notícia inusitada. Em uma comuna do cantão de Vaud (do qual Lausanne é a capital), uma senhora foi impedida de entrar no ônibus com seu bichinho de estimação: um jumento! Ela argumentou, com razão, que não havia nada na lei local que proibisse jumentos de usar o transporte público (o que era verdade) – e que tinha comprado até uma passagem inteira para o bicho... Mesmo assim, tiveram de descer do ônibus: injustiça! Alguns dias depois o conselho comunal expediu uma nova norma especificando que animais podem fazer uso, acompanhados dos donos, de trens, ônibus e barcos que circulam no cantão.

Notei que a norma não fala nada sobre animais desacompanhados... Acho que vou ensinar a Luna a pegar o bonde sozinha para ir ao veterinário ou ir de bicicleta passear no parque!

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11 abril 2012

3. COMPANHEIROS DE CELA

Passar uns tempos internado no Hospital Universitário de Genebra, o HUG, penso eu, não seria tão ruim se eu pudesse ficar em um apto individual, sozinho com meus pensamentos. Daria para aproveitar o retiro involuntário e escrever um pouco, ler e descansar, atendido por enfermeiras jovens e bonitas.

A realidade, porém, gosta de nos colocar em maus lençóis, mesmo que esterilizados. Eu passei uma noite apenas em uma enfermria com mais umas cinco ou seis pessoas e jamais vou esquecer o concerto de flatulências que durou a noite toda, acompanhado de gases altamente venenosos vindos de todas as direções e se concentrando em volta da minha cama feito uma nauseabunda neblina.

Nem vou conseguir esquecer dos sons: havia o de apito quebrado, bem fininho, vindo do velhinho da cama ao lado, que provavelmente pensava que ninguém ouvia; o de tuba entupida, que um grandalhão deitado no canto mais remoto do quarto emitia sem cessar, na maior desfaçatez; o de britadeira, do meu vizinho da frente – e o pior de todos, o de panela de pressão vazando, produzido por um paciente que devia já estar morto a dias, a julgar pelo cheiro que emanava.

Meio grogue pela falta de sono e de ar puro, fui transferido para um quarto privado, ou melhor, semi-privado, para dois pacientes, como todos os quartos “privados” do hospital. Ficar com só mais uma pessoa é um luxo para poucos; eu sabia disso e estava agradecido, mas mesmo assim eu tinha certeza de que iria me incomodar. Quem seria o outro habitante daquela cela? Teria eu a sorte de ser uma pessoa em coma ou anestesiada por quatro dias? Ou o azar de ter um vizinho simpático, daqueles que puxam papo e têm sempre uma palavra de incentivo e apoio para nos dar (sem pedirmos)? Arriscava até pegar um convertido que resolvesse me salvar do diabo com leituras de trechos de um livro só. Que medo!

Bem, o fato é que eu tive, nas três vezes em que estive internado no HUG, seis ou sete room mates, um mais estranho do que o outro. Não sei o nome de nenhum, mas me recordo de todos pelos apelidos que neles coloquei para poder lembrar deles depois. O primeiro foi o Malamorte, um senhor de uns 140 anos que não parava de reclamar da enfermagem, ora em inglês ora em francês:
- Fucking nurses! Stupid bitches! Je veux aller au toilette! Venez me chercher, NOW!

Ele falou, reclamou, xingou e tossiu tanto que eu peguei o meu iPad e fui ver uns filmes na sala de espera. Não achei que tinha problema, mas uma enfermeira discordou:
- O senhor não devia estar aqui às quatro horas da madrugada... E o seu fone de ouvido deve ter se soltado, porque dá para ouvir tiros e explosões lá do posto de plantão!

Eu dei uma de joão-sem-braço e fui ficando por lá até o dia clarear. Aí mudaram o velho de quarto e eu fiquei um dia inteiro sozinho - maravilha! - até receber um novo colega de habitação, o Aquaman.

Dei a ele esse codinome porque o jovem estava permanentemente ligado a diversos aparelhos que incluíam uns tubos de vidro cheios de líquido borbulhando o tempo todo. O barulho até que não era dos mais desagradáveis: parecia que eu estava flutuando dentro de um grande aquário. O problema é que penetrava tanto na minha cabeça que eu sonhei que era um lambari, me debatendo, fisgado por um anzol preso na barbatana , até acordar com a enfermeira me dizendo que eu devia estar tendo um pesadelo, pois tinha arrancado o tubo de soro do meu braço e estava pulando na cama!

Depois dele vieram vários outros companheiros de cela, que nem tenho espaço aqui para descrever. Alguns vieram andando, outros empurrados em cadeiras de rodas, outros deitados em suas camas, semi anestesiados. Eu, que torcia para ficar sozinho, tinha vontade de passar uma boa rasteira nos que viam andando, empurrar os de cadeira de rodas para fora da varanda e colocar os meio inconscientes no elevador de serviço, sem sua plaquinha de identificação.

O Mad Max foi meu último companheiro, ainda na semana passada: um moço forte, todo tatuado, careca, com jeito de skin head cansado e nervoso (má combinação....). Foi logo tirando toda a roupa, que atirou com raiva na sua metade do armário, arrotou bem alto e prolongadamente, se sentou só de cueca na beira da cama e abriu seu notebook preto, todo cheio de adesivos de caveiras, cobras, raios e runas e desandou a falar em altos brados pelo skype com várias pessoas da gang, digo, família. Ao olhar aquela figura estranha que seria minha bela companhia para a noite, já fiquei pensando:
- Será que perdeu o cabelo de tanto balançar a cabeça cantando Fear of the Dark? Será que é um friorento fotofóbico e vai resolver invocar comigo só porque eu não nunca apago a luz nem fecho a janela?

Por via das dúvidas fiquei bem quietinho na minha metade do quarto, separado do MadMax apenas por uma frágil cortina, até ele sair para fazer uns exames. Aí empacotei as minhas coisas e piquei a mula do hospital, numa aventura que vou contar em outro post.

Por ora deixo aqui registrado que sou culpado das acusações de ser elitista, egoísta, intolerante, rabugento e mimado, pois nem o cabelo – quando eu tinha – eu gostava de repartir, quanto mais um quarto de hospital... Da próxima vez vou fingir que estou passando muito mal, com uma doença desconhecida mas super contagiosa apanhada em uma floresta tropical, para ver se me colocam no isolamento!

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09 abril 2012

2. BOM PRÁ CACHORRO


Houve um tempo em que a expressão "educado em colégio suíço" era sinônimo de uma educação completa, tanto nos aspectos referentes aos estudos propriamente ditos, quanto de uma formação complementar, que envolvia especialmente habilidades de convívio social e de comportamento adequado a cada ocasião, o  "fino trato" que significava que uma pessoa era educada, não somente instruída.

Hoje em dia, no Brasil, onde a educação anta tão desacreditada, aquela expressão virou recurso para o sarcasmo e a repreensão. Por exemplo, quando um jovem se comporta mal à mesa, fazendo barulhos de esgoto ao comer, emporcalhndo a toalha e tomando refrigerante no bico, se arrisca a ouvir de uma pessoa ofendida com esse comportamento:
-       Foi educado em colégio suíço,é?

Não sei se ainda existe, de fato, uma admiração pela formação em escolas suíças; poucos devem saber que ela é, ou foi, uma referência mundial para a qualidade ediucacional. Sei, no entanto, pela observação, que os suícos ainda acreditam no valor da educação não formal. Aqui se ofertam - e são exigidos - cursos para tudo. Nada de ir fazendo o que te der na telha: antes de qualquer coisa vai ser preciso fazer algum curso.

Você gostaria de pescar no lago ou nos rios do cantão? Você vai precisar de uma licença e para obtê-la você terá de fazer três cursos: um mais geral sobre ecologia e proteção ao meio ambiente, outro sobre a legislação vigente, normas e regulamentis para a pesca amadora e um terceiro sobre as espécies que você pretente pescar e sua preservação.
Você quer dirigtir? Mais cursos, com mais lenga-lenga do que no Brasil (se você acredita que é isso é possível). Abrir um boteco? Curso. Ser bilheteiro de cinema? Vários cursos. Levar o cachorro para passear? Uma porção de cursos terá de ser feita – e com bom aproveiamento.

Por falar em cachorro, ter um cachorro na Suíça, e mais ainda no cantão de Genebra, dá um trabalho do cão (não resisti…). É tudo super regulamentado: além de ter um chip Implamtado sei lá em que parte do corpo, o cachorro tem de andar com duas plaquinhas, uma com nome e endereço e outra com o número da licença. Esta plaquetinha pode ser de lata ou de plástico, mas vale ouro puro, porque para recebê-la você e seu cão deverão fazer não um, mas quarto cursos!

O primeiro é só para os donos. É ofertado como curso de “sensibiliização” , mas deveria ser chamado de “aporrinhação”. Um monte de papo-furado sobre direitos caninos, bons tratos e leis de proteção aos animais. Claro que estes têm seu direitos – longe de mim negar isso, logo eu que amo todos os animais, gatos  e moscas excluídos. Mas, com ou sem direitos, continuam sendo animais e não gente. Essa pequena distinção parece ter escapado aos docentes daqueles cursos obrigatórios. Quem os ouvir, se não tiver sido avisado de antemão, vai pensar que eles se referem a crianças famintas, maltratadas e abandonadas, e que seus pais, digo, donos, são todos potenciais cachorrófobos agressivos e perigosos.

Bem, depois de 4 horas dessa tortura, vai ser preciso ir mais cinco vezes ao local da capacitação, agora acompanhado de seu filho, quer dizer, do seu cão. Quatro vezes para um curso de uma hora por dia para educação básica do pimpolho: “senta”, “deita”, “fica”, “vem”, e outros comandos essenciais. Senti falta do “caga” e “recolhe”, poia aqui em toda esquina tem (gratis) saquinhos para você recolher as minas que os cachorros vão plantando no caminho, sob pena de pesada multa. Mesmo com essa ameaça vêem-se cocos na rua, mas sempre no meio de moitas e cercas-vivas, para onde algum dono preguiçoso os chutou quando ninguém estava olhando.

Nessa linha, logo vão estar exigindo que a cachorrada diga "por favor", "dá licença" e "muito obrigado"...

A quinta visita será um teste de obediência (do cão), se ele não estiver entre as 15 raças banidas do cantão, como filas brasileiros, pitbulls, rottweilers e mastins. Estranhamente, dobermans, pastores alemães e belgas são permitidos. Essa lista foi resutado de dois plebiscitos: o primeiro decidiu pelo banimento de cães perigosos e pela proibição completa de sua importação; o segundo decidiu as raças que seriam banidas. Pelo jeito os donos de dobermanns e pastores se mobilizaram para impedir que estas raças fossem banidas, mas não posso afirmar isso. Eu votaria pela exclusão de yorshires, lahsas e chiuahuas, muito perigosos para a calma universal.

Só sei que é muito curso e muita regra para se ter um cachorro por estas bandas. Não se pode de maneira alguma ensinar o seu cão a ciudar da casa, do carro ou de qualquer objeto ou pessoa (cães de guarda aqui não existem). Pior: não se pode permitir que seu cachorro faça coisas instintivas como latir para estranhos, correr atrás de gatos e outros bichos e dar aquela tradicional mijadinha nos postes. Não sei como conseguem isso! 

Penso que as pessoas que criaram todas essas regras não podem gostar de seus animais – querem é controlá-los, curtem mandar neles e exercer poder sobre algum ser vivo. Devem ser chatos prá cachorro (não resisti, de novo).

O cão de uma pessoa dessas é o seu melhor amigo por uma razão bem simples: é o único!


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06 abril 2012

1. COMIDA DE HOSPITAL


Depois da minha espetacular fuga do spa de segurança máxima onde estive internado na semana passada, resolvi me vingar e contar para o mundo como é a comida nos hospitais suíços e a que submetem os pobres pacientes.

Não sei por onde começar, pois me faltam palavras para descrever aquilo que lá chamam, talvez por brincadeira, de "refeições". Vou então dar um exemplo de menu – juro que é tudo verdade!

Alguém já comeu alface cozida? Não sabe o que está perdendo... Mas não faz diferença, se comesse também não saberia, pois não tem gosto de nada. E a aparência, então? Uma massa disforme, de cor verde-excreção, cozida até quase desmanchar, te olha do fundo do prato como quem diz: “Eu também não me comeria”...

Imaginem agora essa iguaria servida juntamente com um purê de salsão sem sal. Imperdível, quero dizer, imperdoável. O tal purê parecia uma gelatina incolor derretida, sabor zero - e diet.
São esses os acompanhamentos do componente central do menu: carne de cavalo moída, sem tempero, com pedaços de nabo e molho de erva-doce. Para fechar esse apetitoso menu, a sobremesa: um delicioso pudim de ruibarbo diet. Ruimbrabo, deveria se chamar essa coisa roxa, pegasosa e asquerosa.

O lado bom é que a gente pode pedir para que troquem um componente do qual já sabemos que não gostamos por outro que vamos aprender a detestar.

Eu troquei, por pura esperança mal fundada, a alface cozida por um punhadinho de penne, que veio mole, sem sal, sem molho e sem tempero, cozido só na água, para ser mais saudável. Uma cola terrível que não desgrudava do garfo, nem da garganta. O purê de salsão poderia ser trocado por purê de espinafre. Deixei como estava, pois já tinha visto aquele purê antes e parecia uma bosta de vaca no meio do prato.

Mas troquei a sobremesa e aconteceu algo que jamais achei que seria possível: a nova opção foi mais revoltante do que a primeira. Era meia maçã assada – mas com calda diet de alguma coisa não identificada imitando morango, com cheiro de anis e gosto de gengibre, horrorosa. Parecia uma bunda sangrando.

Só posso tentar adivinhar que mente perversa poderia conceber um menu assim. As sádicas que serviam eu conheci bem; elas sempre tinham a desfaçatez de me dizer, com carinhas de anjo do pau oco:-“Monsieur Simao, o senhor vai gostar muito da refeição de hoje, é especial!

Tenho certeza que era. Especialmente feita para me torturar! Eu passei a ter pesadelos por causa disso, sonhando que estava em Santa Felicidade comendo um risoto de giló, maionese frita e frango cru! E, de sobremesa, sorvete de lasanha à bolonhesa...

Perto da comida do hospital, até os insossos pratos dos bistrôs suíços parecem iguarias. Agora que fugi daquela prisão, vou pra casa comer, direto do pacote, a farinha de mandioca morreteana que a Mari me trouxe do Brasil, que vou fazer descer com suco de caju vencido que achei aqui num boteco português.

Maravilha !


05 abril 2012

BOAS VINDAS!

Criei este espaço por pura preguiça.

Explico: morando em Genebra, longe da famíia e dos amigos, vivo enviando e recebendo emails e mensagens nas redes sociais, para mandar notícias daqui para todo mundo. Dá um trabalho danado! Acho que com um blog fica mais fácil fazer isso - escrevo uma vez apenas! - e mais divertido.

Outra vantagem é que fica tudo registrado e quem quiser ler ou reler alguma coisa que escrevi no blog, pode achar tranquilamente no arquivo.

Quero registrar aqui as minhas impressões, opiniões e visões (leia:se: rabugices e implicâncias)  sobre a vida em terras helvéticas. Vou comentar sobre tudo: cultura, vida social, política, natureza, gastronomia, turismo e o que mais me der na telha, sempre do ponto de viata de um curitibano da gema, muito à vontade com o frio e o céu cinzento mas com muita saudade das pessoas e da comida da terra natal.

Os desenhos são do Adriano Pinheiro, super ilustrador e amigo.

Espero comentáios e sugestões.
Um abração para todos!