16 dezembro 2012

22. Trens novos... e velhos.

“Nossa, que cheiro estranho”, pensei eu, “do que será?”

Depois de uma ou duas fungadas eu tive certeza: era cheiro de velho!

O trem havia parado em um pequena cidade perto de Biel, no trem de Genebra para Basel, para onde eu estava indo ver uma feira de tecnologias educacionais. Até então, uma viagem bem tranqüila, sem nada fora do normal, vagão praticamente vazio.Como eu não gosto de viajar encostando joelhos ou ralando coxa com nenhum estranho, estava bem feliz por poder viajar sozinho em um espaço para quatro pessoas. A felicidade, no entanto, tende a durar tanto quanto um sorvete no verão.

Quando o trem deu mais uma paradinha em alguma vila com nome impronunciável, eu nem imaginava que o vagão seria invadido por uma turma barulhenta de mais de vinte professoras e professores aposentados indo ver a feira. Mas não fui tomado de surpresa, porque o cheiro que veio lá de fora quando as portas se abriram já tinha me alertado: vem aí um grupo respeitável de gente ‘de idade’!

Eu estava meio dormindo, mas o ar peado com cheiros conflitantes que precedeu a entrada do pessoal me acordou e me sacudiu como se fosse um tsunami vaporoso, antes mesmo que eles se abancassem em todos os assentos disponíveis, com um alarido pouco suíço.

Foi um abre-alas olfativo, uma vanguarda que preparou o caminho para a chegada dos demais odores, que iam do perfume fóssil ao de baú de roupas do tempo em que a Suíça tinha mar.

Antes que digam que sou preconceituoso, esclareço que não disse que “velho cheira mal”. Disse apenas que cheiro de velho, mais ainda por estas bandas, é inconfundível e tem longo alcance.

Não se trata de um único cheiro mas de uma combinação caótica de diversos odores, uns desagradáveis, outros menos, outros até respiráveis em situações controladas. Isoladamente, alguns destes aromas poderiam ser toleráveis (dois séculos atrás) mas, combinados, ameaçam as narinas mais sensíveis com um tufão de estímulos olfativos poderoso.

Sei que o conceito de “agradável” é muito relativo. Para as velhinhas que passam talco de alfazema pode ser que este pó tenha um ‘perfume’ que as agrada, mas para mim é meio como aspirar rapé vencido. Nunca tive esse desprazer, mas me lembro de passagens nos livros de Monteiro Lobato e fico torcendo para que o talco vire pó de pirlimpimpim e eu seja transportado mágica e rapidamente para um lugar fresco e aberto, como o topo do Monte Branco

Por falar em alfazema, estive na Provença no verão e tive a oportunidade de ver os lindos campos azuis de lavanda, tão famosos. Não quero desestimular o turismo na região, mas o aroma que emanava daquelas arbustos secos parecia o de banheiro de rodoviária recém-lavado. Ou o de sabonetes chiques comprados por R$1,99 a dúzia. Para minha consternação a maioria das professoras usava algum derivado dessa florzinha pretenciosa, mesclado com o cheiro de naftalina e madeira que sempre permanece suspenso no ar em torno de casacões e xales tirados de guarda-roupas antigos, daqueles que há décadas vêm pedindo para serem queimados para gerar calor.

Só não entendo por que os velhos suíços cheiram à roupa guardada e mofada: eles nunca tiram os casacões e sobretudos de lã, faça frio ou calor. Acho que estes senhores se penduram no armário para dormir, sem tirar os agasalhos! Devem usar suas roupas como isolantes térmicos, mantendo uma temperatura constante durante todo o ano, como os tuaregues.

Outra possível explicação é que o mofo faz parte do vestuário e já vem de fábrica, ofertado em várias cores e texturas, do branco giz ao verde limão embolorado. O que julgamos ser um casaco mofado na realidade é um Armani suíço.

O trem era bem novo e bem mantido, o que só piorava a situação. Em função do ar condicionado as portas são hermeticamente fechadas. Não entra o frio externo, não sai o calor interno – e nem os aromas que o vagão acumula. Terrível efeito colateral da tecnologia. Melhor é andar em trens mais velhos, daqueles que dá para abrir as janelas, mesmo congelando os demais passageiros.

Agora chego a um assunto delicado e possivelmente politicamente incorreto: o do uso (ou melhor, do não uso) de maravilhas modernas como o desodorante . Não vou generalizar dizendo que as axilas suíças não são borrifadas todos os dias, mas que o desodorante não está entre os eletrodomésticos mais usados por aqui, disso eu tenho grande desconfiança. São Tomé não precisaria ver para crer: bastaria respirar um pouquinho a uns dois metros dos braços abertos de certos passageiros de um ônibus ou tram para virar São Tomé nocauteado!

Para não ser injusto demais, devo dizer que em geral as mulheres suíças que compraram seus perfumes nas últimas décadas andam bem cheirosas e até deixam rastros no ar por onde passam. Com estes dois extremos, não é preciso ter faro de sabujo para seguir alguém por aqui...

Penando nesse tipo de bobagem, lá fui eu entre lavandas pré-históricas e sobretudos fungados enfrentar mais uma hora e meia de viagem até meu destino final. Além das incômodas flagrâncias, tive de aturar uma algazarra e tanto durante o trajeto, uma vez que os ex-docentes não paravam de falar ao mesmo tempo e dar sonoras risadas, como os escolares que um dia foram (a nostalgia e a surdez são dois fatores que ajudam a aumentar o burburinho em aulas para adultos e em excursões da ‘melhor idade’). Perto das essências e olores emanados, porém, o barulho foi um incômodo fácil de tolerar.

A volta de Basel foi mais tranqüila, trem vazio e mais velho, janela aberta, ar frio entrando pelas narinas sofridas. Chegando em Genebra, fui a uma exposição inusitada: “Perfumes da Bíblia”, no Museu da Reforma. Já tinha sentido cheiro de velho, não haveria mal em ir sentir velhos cheiros, pensei. E valeu a pena: em painéis com belos desenhos, trechos e citações, aprendi sobre diversos aromas e sua função religiosa, mas o mais interessante foi poder aspirar e sentir o cheiro de mirra, láudano, âmbar, incensos, bálsamos e outros perfumes citados na Bíblia.

Juro que me senti transportado a tempos e lugares distantes e misteriosos, levado pelos estímulos olfativos que incrivelmente despertam outras sensações, visuais, sonoras e até gustativas. Bem, isso eu já sabia, pois cada vez que sinto um cheiro esquisito, de flores arcaicas, perfumes ancestrais, tecidos jurássicos e peles não arejadas, me vejo de novo naquele trem com os vinte e tanto professores, ouço sua algazarra infanto-senil e sinto gosto de cabo de guarda-chuva na boca. Bem-vindos à era da multimídia!

Sempre achei que o design do corpo humano tem umas sérias deficiências, dentre as quais a falta de uma forma eficaz de tapar os ouvidos e as narinas, assim como podemos fechar os olhos e a boca. Seria muito bom se desse para acionar pestanas nas orelhas ou apertar lábios nasais, isolando barulhos e cheiros que nos desagradassem.

Mas poderia ser bem pior, se tivéssemos sido castigados com o faro de um cachorro. Talvez seja por isso que cães só pagam meia tarifa para andar de trem: é para compensar o dobro do sofrimento!