20 setembro 2012

20. MAGOO NO TRÂNSITO.

Se o velho Mr. Magoo tivesse se aposentado em Genebra, teria sua vida (e a dos que o cercavam) muito facilitada.

Uso o passado porque na minha infância Mr. Magoo já era velho e assim já deve ter batido as botas, para usar uma expressão da época. Personagens também morrem, não por causa da idade, mas por nosso esquecimento - como mostrou Neil Gaiman em Deuses Americanos.

Da mesma forma, penso eu, podem ressuscitar pela lembrança. Foi o que eu fiz com o Mr. Magoo, depois que passei a enxergar muito mal em função da minha retinopatia. Fui me lembrando dele aos pouquinhos e quando percebi já saía para passear com ele, estava pegando ônibus a seu lado e fazendo compras na sua companhia. Consequentemente, ia me identificando com ele cada vez mais à medida em que tentava aprender a conviver com a minha deficiência (sem eufemismos, por favor – é deficiência mesmo) visual.

Acho que comecei a ver a cidade com os olhos do Mr Magoo (quase literalmente, porque ainda não estou tão ruim como ele) pela mágica da empatia, me colocando nos seus sapatos. Por isso posso dizer que, se ele vivesse aqui, seu sobrinho não teria tanto trabalho, pois o velhinho provavelmente seria capaz de sair sozinho sem causar muita confusão. A cidade está preparada para os magoos como ele e eu.

Explico: o conjunto de recursos que Genebra oferece para pessoas com deficiências visuais é muito grande. A começar pelas faixas de pedestres, que estão em toda parte, a cada quadra praticamente, amarrando o trânsito mas facilitando a vida de quem precisa cruzar as ruas para o outro lado de lá (que é onde sempre estão os lugares para onde queremos ir).

Todos - com exceção dos ciclistas - param para que os pedestres possam passar: basta chegar perto da faixa, não é preciso nem colocar o pé na rua. É uma boa sensação sentir o poder de parar todo o tráfego sozinho, nos dois sentidos, sem fazer mais do que ameaçar querer atravessar a rua!

Os motoristas que vêm de países onde imperam os carros não se adaptam muito bem a esse esquema. Aprender a parar, é claro, mas vão se irritando no trajeto, inexplicavelmente. Não vejo motivo para nervosismo só porque às vezes tem duas faixas na mesma quadra, com um sinaleiro na esquina seguinte...

A lei de Murphy é implacável: todo sinal estará verde até o pedestre acabar de atravessar a faixa; assim que o motorista arrancar o sinal fechará. Logo que abrir, o carro poderá avançar uns 100 metros e mas já terá de parar de novo, na próxima faixa, pois lá vem um velhinho de bengala batucando na rua como se estivesse caçando uma barata. Dá até para enxergar a linha pontilhada que ele vai traçando no chão, rumo à receptiva faixa.

Alguns procuram acelerar para chegar na faixa antes do velhinho e por isso os cem metros antes das faixas são locais perigosos para quem não vê bem e erra o local da travessia. Os motoristas podem roer as unhas, mas como é bom ser pedestre nessa hora e poder sair para fazer as comprinhas diárias, sabendo que vai poder atravessar a rua onde precisar, sem correr o risco de virar parte do asfaltamento!

Nos poucos dias que fui ao Brasil quase fui atropelado - porque me distraí (duas vezes) ou porque, não havendo faixa nem sinal até onde a curta visão alcançava, tive de arriscar uma bisonha corrida por entre os carros para cruzar a rua. Sei que corria meio de lado, me preparando para virar de bunda para o veículo que tocasse em cima de mim, ingenuamente imaginando que assim iria me machucar menos.

Ainda bem que meu problema é só a visão e ouço muito bem. Se fosse meio surdo também seria um risco enorme, pois não teria escutado nem as buzinas nem os berros de “sai da frente, moleza” ou de “acelera, lesma!” que me alertaram para a perigosa e crescente proximidade de carros e motos. De certa forma, gritos e buzinas funcionavam como o disparo de um revólver no atletismo e eu saía na disparada para os meus dez metros rasos com barreiras.

Quem tem uma boa visão periférica são os motoristas de ônibus, que, como os nossos, são exemplos de educação e gentileza para com os passageiros. Se o motorista percebe que uma pessoa vai perder o ônibus se ele arrancar, ele espera. Isso às vezes é irritante para quem está no ônibus e tem pressa (suíços não têm essa palavra no seu dicionário) mas todos aceitam sem chiar.

Já vi um motorista esperar uma senhora que estava do outro lado da rua apertar o botão para fechar o sinal, aguardar o sinal fechar, atravessar calmamente, ir até a máquina de bilhetes, abrir a bolsa, procurar as moedas, comprar o bilhete e finalmente subir no ônibus. Tudo isso em menos de vinte minutos! E todo mundo aguardando em paz.

Igualzinho ao comportamento que vi nos nossos ônibus comuns e intermunicipais - com a pequena diferença de que os motoristas brasileiros parecem esperar de propósito que a pessoa coloque um pé no ônibus para então arrancar (o ônibus e a perna que ainda estava na calçada). Dessa forma prestam um serviço social, pois contribuem para o alongamento diário e o aumento da elasticidade dos passageiros, principalmente de quem anda meio travado.

Para ajudar mais ainda, eles procuram parar bem longe da calçada para que o passageiro tenha de esticar bem a perna para alcançar a escada – e só arrancam quando os músculos estiverem no seu máximo, para causar o maior benefício possível. Devem ter sido muito bem treinados, por isso exige uma boa coordenação e reflexos rápidos. Em Genebra, os motoristas não são tão considerados e deixam que as pessoas cuidem de sua preparação física em outros locais e horários.

 Nos ônibus e trams quem não enxerga bem é auxiliado pela voz que anuncia a próxima parada. surdinhos podem olhar os monitores que, em vez de comerciais, passam a rota e mostram os pontos seguintes. Se nada disso der certo, o passageiro pode perguntar ao motorista! Não vi, mas não me surpreenderia se visse uma plaquinha dizendo: “Fale com o motorista sempre que precisar: ele terá prazer em auxiliar você”.

Outros recursos ajudam a tornar uma saída de casa mais um passeio do que uma aventura na selva, para quem tem alguma dificuldade física. Nas esquinas com sinal de trânsito, por exemplo, cegos podem tocar no poste com sua bengala e o sinal vai fechar para que ele passe, soando um bip até abrir novamente. E tem um tempo real entre o piscar do sinal do pedestre e a abertura do sinal para os carros. Sim, sei que no Brasil também tem – mas é algo em torno de um décimo de segundo e sempre vai abrir quando gente estiver bem no meio da rua; não dá para chegar ao outro lado intacto sem colocar velocidade olímpica nas passadas.

Um urbanista me disse certa vez que Curitiba não adotou as faixas de parada obrigatória de veículos para “não atrapalhar mais ainda o trânsito”. Trânsito de quem? O meu trânsito está sempre atrapalhado quando saio a pé na minha querida cidade natal. Aqui me sinto muito mais seguro, com tantas regras e normas que protegem o pedestre e não os carros.

Essas regras todas, no entanto, não se aplicam aos ciclistas. Ou melhor, muitos deles não se aplicam às regras. Ciclistas são um estranho híbrido de pedestre e motorista: não sendo motorizados, se consideram pedestres quando houver vantagem nisso; mas como andam sobre rodas, se consideram motoristas quando acham conveniente. Querem o melhor dos dois mundos e ignoram as regras de ambos. Estes ciclistas constituem o maior risco à integridade física dos magoos que, como eu, depositam cega (ops!) confiança na proteção das faixas.

Patinetes também são um perigo. Ubíquotos por essas bandas, utilizados por crianças pequenas, jovens e até adultos (na idade, pelo menos), esses veículos impulsionados por patadas trafegam em ruas e calçadas indiscriminadamente.

Uma das minhas visitas olhou espantada quando um menino passou por nós montado em seu patinete: "Olha, um skate de duas rodinhas só!" me disse ela. Quase respondi que não era skate, não, era uma bicicleta bem baixinha, com tablado!

Patinetes têm uma tropia positiva pelas canelas dos incautos e ceguetas que não vêm a tempo o bólido se aproximando. Dado o fato de que patineteiros freiam virando o patinete de lado, o que pega na sua perna é a justamente tábua, geralmente dando uma pancada quebra-tíbia muito dolorida. O jeito é saltar, o que evita a tabuada mas provoca o encontro choco de duas cabeças no ar.

Tirando ciclistas e patineteiros, é uma tranqüilidade sair a pé pela cidade. Há um aplicativo (que se pode acessar no celular, tablet ou computador), que avisa certinho quanto tempo vai demorar até o próximo ônibus chegar no ponto. Como já se usa GPS para controlar a frota, não precisa muito mais para disponibilizar essa informação para os passageiros. Isso é muito bom, mas o melhor é que o app também informa a melhor rota para você chegar de um ponto a outro, estima a duração da viagem e informa quanto tempo um trajeto a pé levaria entre os dois pontos desejados. Você faz as contas e muitas vezes vê que vale a pena ir a pé. Mesmo que seja um pouco mais demorado, você pode constatar que indo a pé você ainda vai chegar no horário, ganhando em saúde e poupando algumas moedinhas.

Isso sim incentiva as caminhadas! Com tantas faixas e sinais, boas calçadas, respeito dos motoristas e muita segurança pública, ser pedestre por aqui é muito fácil. Não que eu tivesse muita escolha, pois já não dirijo faz tempo. Bem, eu poderia dirigir se quisesse, mas magoo como ando os outros motoristas reclamariam um pouco, eu acho. Talvez os velhinhos nas faixas de pedestres até gostassem de alguma excitação e da oportunidade de fazer algum exercício!

Quando eu voltar para o Brasil não sei como vou me readaptar. Já estou procurando um veículo anfíbio de pequeno porte, megablindado e com piloto automático, que me permita transitar por aí sem grandes riscos. Algum sobrevivente tem um para vender?

Um comentário:

  1. Toni, se até para a gente que enxerga é dificil atravessar rua, imagino para quem tem qualquer tipo de dificuldade. Atravessar a Candido de Abreu, aqui em Ctba, é sempre uma aventura!!

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