12 setembro 2012

19. MOFANDO NA FILA.

A educação suíça é fantástica, mas pode ser extremamente irritante, como no caso das faixas de pedestres (quando se é motorista) ou das ciclovias (quando se é pedestre), já comentadas em blogs anteriores. Já comentei também a falta de pressa que é padrão por aqui, onde só corre quem está fazendo jogging ou tentando pegar um ônibus que está quase saindo.

Existem lugares onde as duas coisas – educação e lerdeza - se juntam de uma forma exasperante, como nos supermercados. A começar pelos dias e horários de abertura. Supermercados não abrem aos domingos. Ponto final. Só o do aeroporto abre por algumas horas e alguns (poucos) mercadinhos de turcos e indianos espalhados pela cidade. Supermercados também não abrem nos feriados e tampouco à noite: fecham às 18 ou 19 horas todos os dias, menos às quintas, quando fazem um esforço sobrehumano para atender até as 21 horas.

Resumindo: você só pode fazer compras em horário de trabalho ou aos sábados, disputando espaço com todas as demais pessoas que não puderam dar uma escapadinha durante a semana para fazer suas compras essenciais.

O pior é que nem dá para sair dando cotoveladas, empurrões, rasteiras e outras técnicas usuais nos supermercados brasileiros; aqui a educação prevalece, mesmo às custas da sanidade.

Quer um teste infalível do grau de seu controle emocional? É só entrar em uma fila em qualquer dos caixas em um supermercado e você vai saber rapidinho se já está integrado ao modo suíço de viver ou se, pelo contrário, o seu acelerador interior continua ligado.

Tenho oportunidades quase diárias de fazer esse teste e ainda não consegui passar. Veja um exemplo, tirado de um dia típico de enfileiramento em um dos supermercados perto de casa.

A fila em que eu estava tinha quatro pessoas à minha frente. Somente quatro pessoas: uma moça, uma velhinha, um menino de uns dez anos e um senhor. A primeira já estava terminando de passar as suas compras quando escolhi aquela fila. "Vai ser rapidinho", pensei eu. Não poderia estar mais enganado...

Vi que a moça esperou até a caixa apresentar o ticket para só então abrir a bolsa, procurar nas profundezas alguma coisa por uns dez minutos e tirar de um compartimento lateral uma carteira pesada, da qual abriu diversos zippers até encontrar uma carteirinha com seus cartões de crédito (uns vinte). Tudo bem devagar, como se estivesse imersa em gel. Sem alterar o seu ritmo, foi navegando pela pilha de cartões, olhando cada um como se fosse uma fotografia de uma pessoa querida, até achar o que queria usar - e aí finalmente efetuar o pagamento. Arre!

Essa rotina não tem nada de incomum: acho que faz parte de algum treinamento de clientes femininas, pois quase todas se comportam dessa mesma forma. Isso quando não resolvem pagar com vales, cupons e outros papéis que a caixa terá de conferir, um por um, ver a data de validade e anotar seus números de série num caderninho ensebado e manchado que todas guardam em baixo do computador (esse é um mistério que ainda não solucionei: se elas têm um computador, por que é que precisam daquele caderninho?).

Enquanto isso, na fila, todos esperam, sem piar nem chiar. Nada dos educados comentários que ouviríamos no Brasil, como “vai cozinhar aí mesmo?”, “alguém morreu aí na frente?” e “vamos fazer uma vaquinha e pagar pra ela, aí ela libera a fila!”. Nada disso. Todo mundo quietinho face à adversidade.

Para testar um pouquinho mais a paciência e o treinamento de todos, a caixa espera até que um cliente guarde todas as suas compras, para começar a atender o próximo. Claro que não existem empacotadoras e na maioria dos mercados nem sacolas plásticas são fornecidas; as de papel são cobradas à parte. As pessoas levam as suas próprias sacolas, carrinhos, mochilas e outras traquitanas – as quais, por uma nova lei de Murphy, sempre serão menores do que o volume das compras realizadas.

Esperadamente, no caso da moça que empatava a fila, essa lei foi aplicada integralmente. A sacola que ela havia levado caprichadamente dobrada não comportou as compras e ela decidiu pegar uma sacola de papel. Depois de gastar uns decaminutos escolhendo a estampa mais bonita, descobriu que não tinha dinheiro vivo para pagar pela sacola, desencadeando novamente toda aquela rotina de abrir bolsa, bolsos e carteirinhas para pegar o cartão.

A fila, já coberta de teias de aranha, esperava impassível. Alguns já se sentaram sobre as cestinhas e abriram seus jornais; outros puxaram seus ipads e começaram a jogar (obviamente) paciência; a maioria desandou a fazer ligações e a conversar no celular com deus e todo mundo. Desconfio que as telecoms dão uns prêmios para as caixas mais enroladas, pois quanto mais demoradas as filas, mais tempo as pessoas falarão nos seus telefones. É uma teoria da conspiração bem realista...

Ainda tem mais! As maiores cadeias de supermercados têm muitas unidades de vizinhança, como as que eu vou na nossa commune. Em dias de semana a idade média dos clientes nesses mercados menores deve estar lá pelos oitenta anos. Eu me sinto jovenzinho naquela clientela!

A velhinha que estava aguardando pacientemente a moça pagar, resolveu se mover para passar a sua compra. Vi que tinha na sua cestinha somente uma baguette, um queijinho azul e uma latinha de ração para gatos. Notei, feliz, que ela já trazia na mão uma nota de dez francos. "Essa vai passar rapidinho", pensei eu. Ledo engano! Ao pegar a comida de gato, a caixa pergunta para a velhinha, tratando-a com familiaridade:

- É para o Boubou? Faz tempo que não vejo aquela lindeza!
- É sim. Ele anda muito enjoado ultimamente, não come qualquer comida e vem emagrecendo. Vou tentar essa daqui, com atum, para ver se ele come.
- Não me diga! Sabe, eu tive um gato que não comia nada, mas passei a preparar eu mesma a comidinha dele e ele ganhou peso depressa.
- Ah, é? O que você dava para ele?

E a interessantíssima conversa segue nesse pique por várias dezenas de voltas do relógio (que eu contei uma a uma) para meu desespero. “Troca esse gato por um cachorro e pronto – libera a fila!”, tive vontade de gritar, mas me contive ao me lembrar da quantidade de felinófilos que existe por aqui. "Paciência, paciência", falei com meus botões; "a velhinha está se despedindo e já está chegando a minha vez".

A senhora entregou a nota de dez francos amarrotada para a caixa, que pediu 17 ou 20 centavos para facilitar o troco. "Acho que tenho", disse a senhora, abrindo a bolsa em busca da moedeira, que encontrou depois de apenas uns vinte minutos de lenta procura. Aberta a moedeira, foi tirando dali moeda após moeda, que ia passando para a caixa ver o valor, guardar as que serviam e devolver as que eram de valores maiores ou eram euros, não francos. E a fila, tranqüila e comportada, olhava com simpatia (ou apatia) a velhinha fazer a sua comprinha diária. Eu, contrastando, já estava querendo fazer as duas comerem as moedas no chá das cinco.

Aí chega a vez do menino, que só tinha um refri para passar. "Agora anda", pensei, animado. Triste ilusão, quebrada quando o moleque tirou da mochila uma pilha de contas para pagar. Me senti voltando no tempo e no espaço, teletransportado para uma fila em um banco brasileiro, com o menino suíço se transformando em um offfice-boy, daqueles que materializam do nada duplicatas e carnês a pagar. A caixa foi dando entrada conta por conta – e cobrando uma por uma, pois os sistemas não são interligados. E a fila, quietinha; nem ao menos olhadas ostensivas para o relógio acompanhadas de fungadas e suspiros.

Depois de uma rápida eternidade o moleque pagou o seu refri e liberou a posição para o senhor que estava à minha frente. "Só mais um!", festejei. Nesse momento, a caixa coloca um aviso dizendo que tinha ido buscar troco no setor central (aqui não tem, como no Brasil, aquela moça que faz isso para as caixas) mas já voltava. Saindo bem devagar, foi troando palavras gentis com as outras caixas e com os clientes que reconhecia no caminho. Idem na volta. E eu ali na fila, criando raízes e musgo.

Finalmente ela voltou, reabrindo o posto – não sem antes guardar todas as moedas em seus respectivos compartimentos, cuidadosamente - e o senhor começou a passar as suas coisas. Ele era bem eficiente e num instante passou uma quase uma cestinha cheia. Quase.

A coisa fica feia quando o leitor de código de barras não lê uma etiqueta ou quando o cliente esqueceu de pesar algum produto e colar a etiqueta ou ainda quando o cliente desistiu de levar alguma coisa. Em todos esses casos, quem vai até as gôndolas trocar, pesar ou devolver o produto, é o cliente, pois não existem aquela mocinhas que ficam por perto dos caixas prontas para essas e outras emergências. Às vezes, no caso de clientes de mais idade, as caixas, em mais uma demonstração da educação helvética, deixam seus postos e vão elas mesmas trocar ou pesar o produto em questão, para que poupar o esforço ao idoso.

Evidentemente, isso aconteceu com a última peça da compra do senhor, que havia esquecido de pesar e etiquetar suas nectarinas. E lá se foi a caixa, solícita, resolver o problema pessoalmente. Na fila, eu já estava soltando fogo pelas ventas, como uma mula-sem-cabeça.

Chegou a minha vez, inacreditavelmente. Para acelerar um pouco, eu ia batendo escanteio e saindo para cabecear: passava parte das compras, ia empacotando o que dava tempo enquanto a moça registrava e voltava para passar mais alguns produtos. A coisa estava indo bem, até que aconteceu uma travada no bom fluxo. Vi a caixa examinando atentamente um dos limões que eu havia escolhido.

- Este aqui está começando a mofar. É melhor o senhor ir pegar outro – me disse ela. -
- Não! respndi, exasperado. Pode deixar, eu levo assim mesmo!
- De jeito nenhum, nós não vendemos produtos de segunda qualidade. O senhor tenha um pouco de paciência que eu vou trocar!

E lá se foi a moça, naquele passo de lesma anestesiada, até o setor de alimentos frescos, substituir gentilmente o meu limão quase mofado. É tanta gentileza que dói!

Quando finalmente consegui pagar a compra e colocar tudo na mochila, me toquei que tinha esquecido de comprar justamente o produto que me fez ir ao mercado em primeiro lugar... Até considerei voltar para pegar, pois o mercado já tem caixas de auto-serviço, nos quais se pode passar as compras sozinho, pagando com um cartão e ir embora, sem ninguém para conferir se tudo foi mesmo pago.

Eu me recuso a usar esse tipo de serviço; por princípio sou contra a automatização que corta empregos assalariados e usa o meu trabalho de graça. Além disso (pode não parecer) gosto do contato humano nas filas de caixas pilotados por moças tão educadas, com clientes tão simpáticos e sossegados. É uma verdadeira terapia para os estressados: ou você aprende a ter calma e relaxar, ou morre de nervosismo de uma vez, acabando com seu estresse para sempre!

Além disso, onde mais eu aprenderia o que se dá para um gato anoréxico?

4 comentários:

  1. É pra ver, a gente sempre aprende alguma coisa escutando a conversa dos outros!!!

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  2. Antoninho.
    É muito divertido ler o que vc escreve.
    Pela lerdeza de como as coisas acontecem aí, cheguei a conclusão de que Suíça é só para fazer turismo. Vivenciar o dia a dia , jamais.
    Com a minha paciência, já iria me indispor com o povo em meio segundo.

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  3. Simão, se você estava assim, imagine eu. rsss

    Que tal você fazer um livro de Crônicas Suiças

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  4. Oi Simão!! Gostei muito... consigo imaginar a cena! Como só viajo a turismo, esse tipo de situação é o que procuro para conhecer a diferença entre os povos...

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