18 janeiro 2013

23. A ESCALADA.

Há dois anos tive meu primeiro e divertido contato com uma festa genebrina. Ia eu chegando para a minha sessão diária de fisioterapia, pronto para enfrentar os exercícios mais entediantes do mundo, feitos na companhia de umas duas dúzias de bem dispostas pessoas (enfartados, acidentados, recém operados, idosos e outros atletas) quando vi, colado em destaque na porta do hospital, um grande cartaz com os dizeres: “Tous à l’Escalade!”

Traduzi literalmente e deu “todos à escalada!” - o que não fazia nenhum sentido ali naquele lugar cheio de alquebradas figuras. Só mais tarde, ainda rindo da ironia, descobri que a Escalade é uma festa exclusiva de Genebra, que comemora um remoto dia do ano de 1602, quando a cidade repeliu um ataque noturno do exército do Duque de Savóia. Até aí nada de mais, nesse canto do planeta que viu um sem fim de guerras e combates. A forma pela qual a cidade se livrou de ser tomada de surpresa é que é única.

Conta a lenda que uma senhora chamada Catherine Cheynel tinha quatorrze filhos, o que não era incomum naquela época (para espanto e horror dos casais de hoje em dia). Não devia ser fácil alimentar toda aquela tropa, mas ela fazia o seu melhor, cozinhando uma bela sopa de legumes em um grande caldeirão de ferro para sua molecada. Que legumes eram, eu não sei dizer, nem se havia algum ingrediente animal no sopão, mas ela aparentemente tinha de deixar a gororoba cozinhando de um dia para o outro (para amolecer as coisas que iam lá dentro ou para dar algum sabor à mistura, sei lá). Sabe-se disso porque foi graças a essa dedicada matrona e à sua sopa preparada de véspera que a cidade de Genebra escapou de ser tomada pelos soldados do Duque.

A D. Catherine, ao ir dar uma olhadinha no apetitoso sopão lá pelas duas horas da madruga, ouviu uns barulhos estranhos vindos de um setor da muralha da cidade e, curiosa como só ela, resolveu se debruçar e dar uma espiadinha muro abaixo. “Se for um gato, vai já para a sopa”, deve ter pensado. Mas em vez de um bichano ela viu um soldado savoyard escalando a muralha, mais traiçoeiro do que o gato que ela pensava achar - e mais peludo.

Não posso dizer se ela gritou primeiro ou se antes de berrar despejou a sopa fervendo sobre o pobre soldado (que já devia ser alguém bem azarado para ter sido escolhido para fazer aquela escalada no meio da noite). O fato é que o berro que o gato deu acordou os demais sentinelas, o alarme foi dado e toda a guarnição da cidadela pode acorrer aos muros e assim evitar a capitulação da cidade.

Desde então, no dia 11 do mês de dezembro ou sábado mais próximo dessa data, comemora-se aqui a festa da Escalade - que a bem dos fatos deveria se chamar da não-escalada, ou da quase-escalada, já que a escalada em si foi imterrompida por um despejar de abobrinhas, vagens, cenouras e batatas quentes sobre a cabeça do infeliz soldado, que depois dessa noite nunca mais aceitou convites para sair tomar uma sopinha para se esquentar.

Dizem as más línguas (leia-se: eu) que os mais felizes com a manobra foram os filhos da matrona cozinheira, que se salvaram tanto do exército inimigo quanto do jantar do dia seguinte!

Para compensar, nos dias atuais serve-se a famosa sopa de legumes da D. Chirstine em diversas barracas, fumegante e quase cheirosa. Não sei do que é constituída e é melhor não saber, porque na fria noite de novembro cai muito bem e nem é tão ruim como seria de imaginar, sendo suíça.

Fico pensando em como seria um episódio assim nos tempos do Brasil Colônia. Será que se arremessaria um panelão de feijoada? Uma barrica de bacalhau? Um quindim pelando? Boa como é, a comida luso-brasileira nem precisaria ser atirada muro abaixo sobre a cabeça de soldados inimigos: bastaria servir o rango e a paz estaria selada, consolidada após a sobremesa, é claro.

A Escalade é uma festa bem popular e dura mais de uma semana, com diversos preliminares. Nos supermercados e chocolaterias vendem-se pequenos caldeirões de chocolate com legumes de marzipan dentro. Muito bonitinhos e com certeza bem mais gostosos do que a sopa salvadora.

No sábado anterior há uma meia maratona, da qual muita gente participa fantasiada, ou melhor, “vestida à caráter”, com roupas da época. A corrida é legal mas o peso das armaduras, os fardões largos, as calças justas e as lanças e mosquetes carregados nas mãos, não contribuem exatamente para a quebra de recordes olímpicos nessa competição. Na realidade, é um milagre que alguém consiga terminar a prova, pois além do vestuário tem o trajeto de sobe-e-desce pelas ruelas de paralelepípedos molhados da vieille ville, calçando botas de salto alto.

No dia da festa propriamente dita as ruas estreitas oferecem uma paisagem meio mágica, com fogueiras, tropas de pseudo soldados passando a cavalo, patrulhas a pé com suas alabardas, bandeiras coloridas por toda parte, crianças imitando os figurantes e quase sendo atropeladas pelos cavalos, e barraquinhas de comes e bebes (mais de bebes do que de comes).

A trilha sonora é bem diversificada, com os sinos das igrejas tocando, fogos espocando, tiros de canhão, repiques e pífaros das tropas, choro de crianças e risada de borrachos. O rufar dos tambores faz a gente querer sair marchando atrás das patrulhas, Eu até ensaiei uns passos, mas a família é meio encabulada e sumiu das minhas vistas assim que comecei a cantar bem alto “marcha soldado, cabeça de papel”…

Se a gente fizer uma forcinha para entrar no espírito da comemoração, imaginando que os turistas são moradores da velha vila, dá para se imaginar na Genebra de quatro séculos atrás. O cheiro de mofo das roupas guardadas há um ano ajuda muito. Os bêbados também contribuem para essa ilusão, pois desde aquela época devem estar por ali, enchendo a cara de vinho quente e o bucho de salsichão com mostarda.

A Escalade é a festa mais divertida da cidade, na minha opinião. Existe uma versão sem graça que afirma ser essa história uma invenção (qual não é?) e que quem deu o alarme foi um guarda municipal atento. Eu e toda a cidade preferimos a versão da madame Cheynel, muito mais interessante.

Mas nem tudo é tradição e efeméride histórica em Genebra. Na ponta oposta da Escalade está a Lake Parade, um horrível carnaval tecno modernoso patrocinado por empresas de refrigerantes, telefonia e informática. Em vez de carros alegóricos, propaganda em neon com as marcas pulsantes dos patrocinadores; em vez de samba enredo, jingles mesclados com o pior techno pop; no lugar de adereços elaborados, gente fantasiada (será?) de piranhas, michês e cafetões… É um indescritível espetáculo de mau gosto, com seus horripilantes ‘lovemobiles’ apinhados de pessoas dançando de cintura dura em suas feíssimas fantasias nas cores do patrocinador. É tenebrosa, a Lake Parade.

Além da parada em si, que interrompe a ponte Mont Blanc e o sossego da cidade desde as quatro da tarde, no ano passado houve um concurso de pessoas fantasiadas de robôs e uma tentativa de quebrar um ridículo recorde: o do maior número de pessoas de mãos dadas dentro de um lago. Os malucos entraram na água gelada e “abraçaram” o lago - que como tem partes fundas perto da margem andou pregando algumas peças nos participantes, para deleite dos espectadores.

É de longe a festa mais deprimente que eu já vi, em qualquer parte do globo. Sim, mais do que o Carnaval em Curitiba! Ainda bem que, suiçamente, a festança tem hora exata para acabar. Deu 10 horas e a ponte reabre, os caminhões se recolhem, a sonzeira termina e a paz volta a reinar, até o ano seguinte.

Tanta paz que num dia desses vi um cartaz que muito apropriadamente mostrava uma cidade deserta e dizia:
“De acordo com as profecias, toda a vida desaparecerá e isso será chamado de Apocalipse... Em Genebra chamamos de Final de Semana”.

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